O novo Papa e o velho fundamentalismo

Pio XII e Hitler


Por Cléber Sérgio de Seixas

Como assinalou o jornalista Luiz Carlos Azenha, o Papa escolhido terá a dupla tarefa de "frear os evangélicos e a esquerda na América Latina". Jorge Mario Bergoglio está para os evangélicos e para as esquerdas latino-americanas assim como Karol Wojtyla estava para o comunismo polonês. Um homem forte, que supostamente fora conivente com um regime forte – uma ditadura, para ser mais exato –, seria o ideal para contrapor-se aos regimes de esquerda que pululam na América ao sul do Rio Bravo. Seria também o homem certo para combater o crescimento das igrejas evangélicas, sobretudo as neopentecostais, que com seus pastores midiáticos, cuja pregação centra-se no evangelho da prosperidade, dia-a-dia arranca fiéis das fileiras do catolicismo. A esquerda dentro da Igreja e sua “opção pelos pobres” também poderia ser alvo das investidas do novo Papa.

Engana-se quem pensa que o Sumo Pontífice será apenas o pastor do rebanho católico mundial. A História revela que os papas também agiam na esfera política e, salvo raríssimas exceções, sempre se posicionaram de forma conservadora ao lado das classes dominantes. Vide o exemplo de Pio XII, cuja omissão à perseguição aos judeus empreendida pelos nazistas lhe fez merecer de John Cornwell a alcunha de “O Papa de Hitler” em livro homônimo. É bom lembrar que no Brasil da primeira metade dos anos 60 a cúpula católica fora francamente contrária aos rumos progressistas tomados pelo governo Jango, tendo organizado, sob a batuta do padre irlandês Patrick Peyton, a famigerada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, e louvado o golpe de 01 de abril de 64. O objetivo maior era deter o “perigo vermelho” supostamente aliado a Goulart. Só após o endurecimento do regime - quando jovens filhos de “boas mães católicas” começaram a ser trucidados nos porões da ditadura - e após os posicionamentos em defesa dos direitos humanos de alguns clérigos e alas da Igreja, com foi o caso dos frades dominicanos e de Dom Hélder Câmara – a Igreja assumiu uma postura crítica aos generais.

Sob as bênçãos de Ronald Reagan, Karol Wojtyla, vulgo João Paulo II, aliou-se a Lech Walesa, fundador e líder do Sindicato Solidariedade, para derrubar o comunismo na Polônia e, por extensão, em todo o leste europeu nos idos de 70 e 80. Paradoxalmente, João Paulo II apoiou a ditadura de Pinochet no Chile.

Em um dos capítulos do livro “O Paraíso Perdido”, o autor, Frei Betto, narra seu encontro com Lech Walesa ocorrido no dia 21 de outubro de 1987. Betto frisa que, na ocasião, Walesa trazia na lapela do casaco um button do Solidariedade e outro com o retrato de João Paulo II. Num capítulo da obra supramencionada intitulado “Almoço Indigesto com Lech Walesa”, o frade dominicano brasileiro narra seu debate com o líder sindical polonês que se transformou num desencontro dado o nível da agressividade verbal do líder do Sindicato Solidariedade.

Segundo Betto, o sindicalista polonês iniciara a conversa assinalando o suposto equívoco de Luís Inácio da Silva, então deputado federal, e que também fora sindicalista, ao criar um partido político, o PT, a partir da luta sindical. Num dos pontos mais tensos do diálogo, Walesa se dirigiu assim a Frei Betto: “Em nossas igrejas, aos domingos, oramos pela unidade dos cristãos, para que haja um só rebanho e um só pastor. Dois mil anos nos ensinam que deve haver hierarquia, deve haver ordem, as coisas devem estar sintonizadas. Porque senão tudo se destrói” (BETTO, 1996, p. 261). 

A afirmação do sindicalista de Gdanski, que teria recebido ajuda de 1 milhão de dólares do governo Reagan, soa atual aos católicos mesmo passados 26 anos desde que fora proferida nas dependências do salão paroquial da Igreja de Santa Brígida. O Catolicismo é uma religião dividida em várias tendências, conservadoras umas, progressistas outras. Da Opus Dei à Teologia da Libertação, passando pelo Movimento Carismático, a Igreja de Roma está longe de um consenso.

Mais uma vez, por ocasião da escolha do novo Papa, se digladiaram forças retrógradas e progressistas; na minha opinião, venceram, novamente, as primeiras. Será possível a unidade católica em meio a tantas diferenças, como pretendia o sindicalista polonês e como pretende a alta cúpula católica? Um só rebanho e um só pastor implicaria no não reconhecimento enquanto rebanho das demais religiões cristãs?

Walesa também aludiu à hierarquia como um dos fatores responsáveis por mais de dois mil anos de estabilidade da Igreja Católica. De fato, a hierarquia piramidal, em cujo vértice se encontra o Sumo Pontífice, é um dos fatores que tornou possível ao catolicismo passar praticamente incólume por mudanças de era e por eras de mudança. Da Antiguidade à contemporaneidade, passando pelo Feudalismo e pelo declínio dos reis, a Igreja praticamente não perdeu sua identidade.

No trecho supracitado de “O paraíso perdido”, Walesa referiu-se também a ordem. A que tipo de ordem estaria aludindo? À ordem que faz calar o oprimido e, assim, alegra o opressor? Ou estaria se referindo àquele tipo de ordem que induz o que sofre com um sistema opressor a aceitá-lo na esperança de merecer do Criador um galardão a ser desfrutado numa outra dimensão espaço-temporal? Ordem significa deixar como está, abraçando, opressores e oprimidos, cada um, seu status quo? Tal ordem seria sinônimo de tradição, nos moldes da TFP (Tradição, Família e Propriedade), slogan daqueles católicos que saíram às ruas contra João Goulart e a favor de um golpe de Estado? Ou a ordem a que se referia Walesa é a que permite pequenas mudanças na superestrutura católica desde que sejam mantidos intactos seus fundamentos?

Por falar em fundamentos, o catolicismo possui seu tipo de fundamentalismo. Segundo Leonardo Boff, “ele vem sob o nome de Restauração e Integrismo. Procura-se restaurar a antiga ordem, fundada no casamento (incestuoso) entre o trono e o altar, vale dizer, entre o poder político e o poder clerical. Visa-se a uma integração de todos os elementos da sociedade e da história sob a hegemonia do espiritual representado, interpretado e proposto pela Igreja Católica (pelo seu corpo hierárquico, encabeçado pelo Papa). O inimigo é a Modernidade, com suas liberdades e seu processo de secularização” (BOFF, 1996, p. 17).

Milhares de católicos esperam do novo Papa a renovação da Igreja Católica. No entanto, ela pode vir numa roupagem conservadora, frustrando aqueles que desejam que o catolicismo se despoje de seu fundamentalismo e se adéqüe aos novos tempos.

Ao que tudo indica, a fumaça que saiu da chaminé da Capela Sistina, apesar de branca, não traz bons augúrios.

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Referências bibliográficas:

BETTO, Frei. O paraíso perdido: nos bastidores do socialismo. 2 ed. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: A Globalização e o Futuro da Humanidade. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.

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