A filantropia de auditório

Por Cléber Sérgio de Seixas

Um dos trechos mais marcantes do filme Germinal (Claude Berri, França, 1993), baseado no romance homônimo de Émile Zola, é quando a personagem Maheude, interpretada pela atriz Sylvette Herry, chega com dois de seus filhos à casa de uma abastada família de burgueses. Espantados com a situação famélica e maltrapilha da mulher e suas crianças, os burgueses, tomados de um arroubo caritativo, tratam de lhes trazer roupas e alimentos. A cena não teria tanta importância não fosse o fato de o esposo de Maheude, interpretado pelo ator Gérard Depardieu, ser um dos empregados daquela rica família proprietária de minas de carvão. Se de um lado os trabalhadores eram submetidos por seus patrões a jornadas extenuantes de trabalho nas minas em troca de ínfimos salários, de outro esses mesmos proprietários dos meios de produção lhes estendiam a mão, ali, de forma assistencialista.

Desse pequeno trecho do filme podemos extrair grandes lições. Uma delas é que no sistema capitalista muitos que mais lucram com a situação deplorável em que se encontram as massas de trabalhadores são os mesmos que praticam ou apregoam a importância da prática da filantropia.

Há grandes empresas que pagam salários baixos a seus funcionários ou os submetem a condições degradantes de trabalho e, por outro lado, promovem campanhas ou projetos filantrópicos que têm como um de seus objetivos mitigar o sofrimento das classes subalternas. Nesse curioso contraste, a mesma mão que hoje acaricia alguns pode ter sido a que ontem fustigou outros. Ao mesmo tempo em que os empresários lutam pela “flexibilização” das relações de trabalho (sinônimo de precarização), procuram “remediar” os efeitos de tal processo.

A responsabilidade social empresarial se insere no contexto do neoliberalismo e é uma das formas de este intervir na questão social. Esta intervenção tem como um de seus principais objetivos impedir que se avancem as conquistas da classe trabalhadora no sentido da ampliação da remuneração e melhorias nas condições de trabalho. O neoliberalismo apregoa a minimização do Estado na área social para que as respostas à questão social, quando lucrativas, sejam transferidas ao mercado e, quando não lucrativas, à sociedade civil ou ao terceiro setor, fornecedores “gratuitos” de serviços sociais.

À medida que a responsabilidade de tratar com a questão social sai de sobre os ombros do Estado e recai sobre os do iniciativa privada, esta concentra seus esforços não sobre as causas da questão social, mas sobre suas conseqüências, de forma a manter sempre fértil o campo para a incidência da filantropia.

Se sob o Welfare State a questão social era internalizada na ordem econômico-política, constituindo um caso de políticas públicas, no contexto atual do neoliberalismo ela é externalizada da ordem social e transferida para o âmbito individual e imediato, sob a égide corporativa.

Exemplos de ações imediatistas e individuais são mostrados todos os fins de semana na programação televisiva. Abundam programas em que os apresentadores dão corpo a ações filantrópicas que promovem reformas de casas e de veículos, repaginação do visual pessoal, auxílio à alavancagem de carreiras artísticas etc, tudo em tom emotivo e em caráter espetacular.

Naquilo que chamo de “filantropia de auditório”, a palavra sonho é repetida inúmeras vezes. Frases como “eu não desisto dos meus sonhos” ou “eu corro atrás do meu sonho” são repetidas à exaustão. Mas a realização desses sonhos fica sob a dependência da boa vontade empresarial, cujo auxílio caritativo camufla interesses puramente econômicos.

A “filantropia de auditório” possui mecanismos idênticos aos da sociedade capitalista. O capitalismo tem a esperteza de socializar os sonhos e privatizar o acesso à realização dos mesmos. Assim, todos podem sonhar com dias melhores para si, contudo a maioria não conseguirá materializar seus sonhos. É lícito a todos sonharem que suas cartas serão escolhidas pela equipe de triagem do programa de TV que distribui benesses. Da mesma forma, qualquer um é livre para gastar parcelas de sua renda em jogos de loteria, esperando ganhar o prêmio que garantirá dias melhores. Contudo, no turbilhão de sofredores, uma ínfima parcela será agraciada. É nisso que consiste a força do sistema: fazer com que os indivíduos acreditem ser possível a todos a ascensão social, quando esta, na verdade, sempre estará restrita a poucos e/ou sujeita à caridade alheia.

Na loteria biológica, poucos são os selecionados para serem agraciados pela “filantropia de auditório”. O efeito tanto nos escolhidos quanto nos preteridos é a despolitização, o individualismo e a diluição da consciência de classe. Assim, em lugar de buscar melhorias para toda a sociedade, o cidadão parte em busca da solução dos problemas individuais. Dividir para conquistar, é exatamente isso que deseja a sociedade burguesa. À medida que cada um buscar os próprios interesses, os da sociedade serão diluídos, e não haverá multidões nas ruas reivindicando direitos e melhorias.

O que pouco se considera é que a “filantropia de auditório” só é viável pela participação de empresários que convertem o auxílio em marketing para suas empresas. Na relação custo/benefício, fica mais barato para o empresário bancar a reforma de uma casa do que pagar alguns segundos de propaganda no horário nobre.

Nem só de Sílvio Santos e eventos esportivos é composta a programação das emissoras de TV nos fins de semana. Há também os programas que vendem a idéia de que todos estão livres para sonhar um sonho impossível. Muitos expectadores se embriagam no ópio televisivo sabático e dominical e só despertam na segunda-feira, quando a realidade se revela nua e crua.
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