Do direito de punir



Por Cléber Sérgio de Seixas

O cenário político-social que hora se descortina no Brasil é dos mais preocupantes. Adjacente ao discurso de criminalização da política se escondem o ódio de classe da burguesia nativa que desdenha a ascensão social das classes subalternas ensaiada nos últimos anos, a intenção de moralizar e criminalizar a pobreza e o desejo recôndito de exterminar as juventudes pobres, negras e de periferia. Tangida pela opinião publicada, aos poucos, a opinião pública vai sendo condicionada a aderir ao discurso conservador e fascista, cuja cadela está sempre no cio. 

Aqui e ali, acontecimentos dão conta de que nossa democracia tem pés de barro e a plenitude dos direitos humanos ainda é algo a se conquistar nessas terras tupiniquins. Quando menos se dá conta, a barbárie se instala. 

Por volta das 12h30 do dia 05 de julho do corrente ano, Cleidenilson Pereira Silva, 29 anos, foi dominado por populares após tentar assaltar um estabelecimento comercial no bairro Jardim São Cristóvão, em São Luiz, Maranhão. Amarrado a um poste, o meliante recebeu pontapés, socos, pedradas e garrafadas. Morreu ali mesmo, despido e atado a um poste de luz. O adolescente que o acompanhava no delito só não teve a mesma sorte porque a Polícia Militar local interviu antes que as agressões se agravassem. Cleidenilson portava um revólver calibre 38. Até a noite do dia seguinte, ninguém havia sido detido. Trata-se do décimo caso de linchamento que se tem notícia em dezoito meses no Maranhão.

No dia 03 de maio do ano passado, Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, faleceu após ter sido linchada por moradores de Guarujá, litoral paulista. As agressões a Fabiane decorreram de boatos difundidos em redes sociais que apontavam a dona de casa como autora de sequestros de crianças para realização de rituais macabros. Quando iniciaram as agressões a Fabiane, esta trazia uma Bíblia às mãos, confundida por seus algozes com um livro de magia negra. 

Em 30 de julho último, na cidade de Itanhaém, litoral paulista, Junio Flávio Alves de Alcântara, 28 anos, foi linchado por um grupo de pessoas que o confundiu com um estuprador. No dia seguinte, fora constatada a morte cerebral da vítima.

No primeiro caso, tratava-se de um criminoso surpreendido por populares no momento do delito. No segundo, de uma pessoa totalmente inocente, cujo assassinato teve como ponto de partida um boato divulgado na internet. No terceiro, novamente, um inocente confundido com um criminoso. Em ambas as situações se observam grupos de pessoas que se arvoram em substitutos do aparato punitivo do Estado. 


Fatos lamentáveis como estes não podem ser dissociados da apologia à justiça feita com as próprias mãos, metodologia tão disseminada por apresentadores de programas pseudo-jornalísticos do tipo “mate e esfole um bandido” que pululam em quase todas as emissoras. A propósito, como esquecer as palavras da jornalista Rachel Sheherazade por ocasião de um episódio ocorrido no bairro do Flamengo, Rio de Janeiro, no qual um menor de 15 anos foi espancado por “justiceiros” e preso a um poste de energia com uma trava de bicicleta. Na época, a jornalista assim se manifestou: "Num país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100 mil habitantes, arquiva mais de 80% de inquéritos de homicídio e sofre de violência endêmica, a atitude dos vingadores é até compreensível". Em outro trecho: "O Estado é omisso. A polícia, desmoralizada. A Justiça é falha. O que resta ao cidadão de bem, que, ainda por cima, foi desarmado? Se defender, claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite". Tempos depois, a polícia descobriu que os rapazes que tinham espancado o menor tinham extensa ficha policial. 

Os efeitos na sociedade que apologia ao justiçamento feita por Sheherazade produz dão conta de que o direito penal moderno está sendo fortemente influenciado pelo populismo midiático penal. Este tem, inconfessadamente, um alvo definido: destina-se tão somente a infratores pobres, pretos e de periferia (PPP). A propósito, são estes que a diminuição da maioridade penal, precipuamente, irá atingir. 

Recorrer à Lei do Talião, no entanto, é retroceder séculos, prescindindo daquilo que empresta a cidadãos o direito de serem chamados de civilizados, haja vista que execuções públicas remetem a métodos punitivos longínquos e obsoletos que caracterizavam o vis corpolis

Em sua obra capital, Foucault aponta as transformações por que passaram os métodos punitivos impostos aos que se postam à margem das leis, afirmando que desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal, qual seja, o corpo submetido a suplício, esquartejado, amputado e servido à massa como espetáculo (FOUCAULT, 1999). O filósofo francês asseverava ainda que o fim dos suplícios em tais moldes equivale à eliminação do espetáculo punitivo, bem como à extinção do domínio sobre o corpo, e que o sofrimento físico, a dor do corpo, não são mais os elementos constitutivos da pena (FOUCAULT, 1999). 

Execuções sumárias em praça pública perpetradas por multidões tresloucadas nada mais fazem que regredir os que delas participam a estágios primevos de manutenção da ordem, subvertendo a prerrogativa sancionadora do Estado.  

Ora, ainda não se evoluiu a ponto de desistir da atribuição do monopólio da violência ao Estado (Weber). O jus puniendi é prerrogativa do Estado. Só este detém o savoir-faire necessário à eficiente execução de investigações, julgamentos e aplicações de penas, estas dosadas conforme critérios jurídicos pré e bem estabelecidos, evitando desproporções no apenamento. 

A punição ao indivíduo transgressor não pode ser aplicada pelas próprias vítimas ou por seus parentes porque, em função do abalo emocional, estes se motivariam mais por vingança, e não por questões de justiça, deixando de observar a proporcionalidade entre a pena e a infração. Assim sendo, é temerário abrir mão de policiais, delegados, investigadores, promotores e juízes. Se tribunais legalmente instituídos são falhos, que dizer da eficiência de "tribunais" formados pela turba ensandecida? 

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Referência bibliográfica

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. 

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