A questão família



Por Cléber Sérgio de Seixas

Sempre que a hegemonia dos donos do capital é ameaçada, um dos primeiros brados que sai das bocas dos nobres burgueses e seus lacaios é aquele que associa a dissolução da família ao avanço do comunismo. Foi assim nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, nos idos de março a junho de 1964, como também foi nas eleições de 2010 e tem sido em 2014. A diferença é que agora a ameaça à família não é atribuída apenas aos comunistas, mas também aos homossexuais.

Poucas vezes numa campanha política se ouviu falar tanto em salvar, fortalecer, defender e manter a família como agora. Tal como no pleito de 2010, a moral judaico-cristã vem pautando o discurso eleitoral de muitos candidatos a cargos eletivos. Deve-se ter claro a que tipo de família se referem os que a tal discurso recorrem. 

O modelo de família que vemos nas telenovelas, por exemplo, com pobres tendo um estilo de vida próprio de pessoas pertencentes à classe média alta, não reflete a realidade dos que estão às margens do sistema capitalista. A TV impõe um padrão de família que não é o observado entre maioria esmagadora da população. Uma família harmoniosa, com filhos bem educados, que fazem aula de piano, que ganham mesada e fazem intercâmbio no exterior, que tem à disposição uma farta mesa de café da manhã, e na qual os cônjuges podem se dar ao luxo de ficar a maior parte do dia numa academia de ginástica não é a família média brasileira. 
Como as idéias, ideais e padrões predominantes de uma sociedade são sempre aqueles da classe mais poderosa, nada mais natural que o padrão imposto a todos os extratos sociais seja o burguês. O padrão de família no sistema econômico hora vigente é o burguês. Tal padrão é perseguido pelas famílias de classes inferiores economicamente, mas poucas têm sucesso em alcançá-lo. Tendo como referência tal padrão, a família em sua plenitude só existe para poucos. Marx e Engels assim apresentaram a questão: “Em sua plenitude, a família só existe para a burguesia; mas ela tem, como corolário, a supressão forçada de toda família...” (ENGELS; MARX, 2009, p. 77). 

Em um dos trechos mais marcantes do filme Germinal (Claude Berri, França, 1993), baseado no romance homônimo de Émile Zola, a personagem Maheude chega com dois de seus filhos à casa de uma abastada família de burgueses. Espantada com a situação famélica e maltrapilha da mulher e suas crianças, aquela família rica, tomada de um sentimento de caridade, trata de lhes trazer roupas e alimentos. A cena não teria tanta importância não fosse o fato de o esposo de Maheude, interpretado pelo ator Gérard Depardieu, ser um dos empregados de uma das minas de carvão pertencentes àquela família. Se de um lado os trabalhadores eram submetidos por seus patrões a jornadas extenuantes de trabalho nas minas em troca de ínfimos salários, de outro estes mesmos proprietários dos meios de produção lhes estendiam a mão, ali, de forma assistencialista. A mensagem que esse trecho do filme passa coaduna com a fala supramencionada de Marx e Engels, ou seja, a existência de um padrão burguês de família pressupõe a sua não existência para uma maioria. 

Com pouca prudência, os candidatos neste pleito de 2014 abordam o tema apresentando o modelo familiar convencional, patriarcal, ou seja, aquele no qual há a união de pessoas de sexos diferentes, com proeminência da figura do homem (pai), como se fosse o único aceitável. Assim, deixam de lado as múltiplas configurações familiares, como a família monoparental, a família informal, a família homoafetiva, etc. Os modelos de família presentes nas classes subalternas são bem mais plurais que o modelo burguês.

Alguns autoproclamados pastores e líderes cristãos, dizem que a família deve ser formada, exclusivamente, por um homem, uma mulher e seus filhos. Vêem na família homoafetiva uma ameaça ao modelo familiar tradicional. Ora, a família tradicional, formada por um casal heterossexual e filhos, não precisa de ameaças externas para se desfazer. Elementos que venham a causar a dissolução da família tradicional são inerentes a ela mesma. Um deles é o cinismo com que alguns casais convivem. Muitos vivem sob o mesmo teto, mas há muito perderam qualquer traço de cumplicidade, o que dizer de afetividade. Vão vivendo juntos, mantendo as aparências, talvez temerosos das consequências advindas de uma separação, tanto em nível familiar quanto social. 

O modelo de família patriarcal ainda predomina no Brasil. Ainda hoje, mesmo após tantas conquistas das mulheres nessa sociedade dita moderna, não são poucos os indivíduos (de ambos os sexos) que não vêem com bons olhos uma mulher separada do marido.

Como demonstrou Engels em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, as relações mercadológicas subordinam as relações pessoais e sexuais. Os pais do socialismo científico já atentavam a isso em seu tempo: “Sobre que base repousa a família atual, a família burguesa? Sobre o capital, sobre o lucro individual.” (ENGELS; MARX, 2009, p. 77).

Abundam exemplos nas famílias tradicionais cujos vínculos afetivos dos casais há muito foram substituídos pelo laço frio do interesse material. Nesses casos, a provisão financeiro-material adquire primazia sobre todas as demais relações matrimoniais, por vezes autorizando abusos de toda espécie (violência física, sexual, psicológica) por parte de um dos cônjuges. Já foi dado um exemplo neste blog de uma situação de incesto entre irmãos, consentido pela própria mãe por motivos puramente financeiros

Mudada a base sobre a qual se assenta o edifício familiar, muda-se tudo. Sentimentos de afeição, paixão, amor cedem lugar ao interesse puramente econômico, em outras palavras, o matrimônio cede lugar ao patrimônio. 

A família tradicional seria algo a ser evocado como ideal se não houvessem casos de violência e abusos sexuais de pais contra filhos; se não existisse, por parte de alguns pais, a imposição do trabalho às crianças em detrimento do gozo da infância; se as estatísticas não constatassem que a maior parte dos casos de violência contra as mulheres são cometidas pelos próprios companheiros no seio dos lares; se não existissem filhos avarentos a tramar a morte dos pais com o intuito de se apropriarem da herança; se não houvessem pais idosos abandonados pelos filhos em asilos ou à própria sorte e sem nenhuma assistência no fim da vida.

Deve-se frisar que entre os candidatos a cargos eletivos no pleito deste ano há indivíduos que respondem a processos por violência contra as esposas. Cinicamente, os tais se referem à família como se esta fosse a instituição mais estável da sociedade, num momento em que abundam exemplos de traição, divórcio e violência entre casais heteroafetivos e, pasmem, entre cristãos protestantes, justo estes em cujo meio há tantos que se arvoram em bastiões do moralismo.

Os supramencionados candidatos deveriam considerar o exemplo de um casal homoafetivo  de Belo Horizonte que adotou uma criança cujos problemas físicos e mentais podem ter decorrido de espancamentos feitos pela mãe e pai biológicos. O casal da Pedreira Prado Lopes, região noroeste da capital mineira, ao adotar uma criança com sérios problemas psíquicos, fisiológicos e motores, dá um exemplo de humanidade a muitas famílias ditas normais. Trata-se de um caso paradigmático de uma família heterossexual que se desfez sob a violência e cujo filho foi entregue aos cuidados de um casal homossexual. 

A família ideal não é a família burguesa solidamente assentada financeiramente. Nem tampouco o é a família tradicional heteroafetiva, ou a homoafetiva, ou a monoparental, ou a substituta, etc. O que torna uma família ideal não é seu poderio financeiro, nem tampouco a configuração sexual dos cônjuges, ou a presença de ambos, e sim a existência de fortes laços afetivos entre seus membros. Não existe família ideal onde não haja vínculos entre seus membros que se estruturem no afeto. Sem este, tanto a família tradicional naufraga quanto os demais modelos familiares.

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Bibliografia:

ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. 2. ed. São Paulo: Escala, 2009.

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