O 11 de setembro chileno e os Chicago Boys
Pinochet (à direita) e Friedman (de terno escuro)
Por Cléber Sérgio de Seixas
“As teorias de Milton Friedman deram a ele o Prêmio Nobel;
ao Chile, elas deram o general Pinochet” (Eduardo Galeano, Dias e noites de
amor e de guerra, 1983).
Em 1970, Salvador Allende chega ao poder no Chile após
derrotar Jorge Alessandri por 53 votos a 35. Sua gestão adotou uma série de
políticas de cunho popular e social. Nos primeiros 18 meses de seu governo
nacionalizou as grandes minas de cobre, ferro, nitrato, carvão e cimento,
estatizou praticamente todos os bancos nacionais e estrangeiros, levou a cabo
uma reforma agrária que expropriou cerca de seis milhões de hectares de terras
cultiváveis e, de forma geral, melhorou muito a vida dos chilenos, sobretudo os
mais pobres. Isso despertou a ira não só da burguesia nativa, como também dos
EUA.
Seis meses antes do coup d'Etat que deu cabo à via pacífica
para o socialismo e a um ciclo democrático que perdurou por 30 anos, nos quais sempre houve eleições parlamentares no Chile, polarizadas entre os partidos
Democrata Cristão e Nacional, à centro-direita, e os partidos de esquerda
agrupados na Unidade Popular, os chilenos iriam às urnas.
Caso obtivesse 2/3 dos assentos do parlamento naquele pleito, a oposição poderia afastar Allende do poder. Para tal, no entanto, precisaria de mais de 60% dos votos. Apesar de alguns meios de comunicação, na ocasião, terem anunciado a vitória da oposição antes do término do escrutínio, no final ficou clara a vitória da Unidade Popular, que obtivera 43,4% dos votos válidos, aumentando seu número de cadeiras no parlamento.
Caso obtivesse 2/3 dos assentos do parlamento naquele pleito, a oposição poderia afastar Allende do poder. Para tal, no entanto, precisaria de mais de 60% dos votos. Apesar de alguns meios de comunicação, na ocasião, terem anunciado a vitória da oposição antes do término do escrutínio, no final ficou clara a vitória da Unidade Popular, que obtivera 43,4% dos votos válidos, aumentando seu número de cadeiras no parlamento.
Em função de tal derrota, a oposição buscaria outros
caminhos além da via eleitoral para afastar Allende do poder. Seu governo passaria
a sofrer toda a sorte de boicotes: ministros foram afastados através de
manobras da oposição, propostas do Executivo foram derrotadas pelo Congresso
oposicionista, sabotagens na distribuição de alimentos foram levadas a cabo, greves no setor de
transporte foram organizadas por entidades patronais, levantes de estudantes cooptados
pela direita pipocaram país afora, além da greve dos mineiros da mina de cobre de El Teniente, uma das maiores
do país. Além disso, nos primeiros meses de 1973, as importações dos EUA ao
Chile cairiam a 15% do total. Na verdade, desde que Allende chegou ao poder, os
Estados Unidos mantinham um bloqueio econômico que sufocava o país.
Não se pode dissociar o que ocorreu no Chile na primeira
metade da década de 70 do contexto da Guerra Fria. É sintomático que no início
da década de 70 a
CIA mantivesse aproximadamente 40 agentes de primeira classe no Chile. Deve-se
aqui frisar que era preocupante ao Tio Sam que mais uma nação se tornasse
socialista, a exemplo do que ocorrera com Cuba 14 anos antes. Tal preocupação
se traduziu em palavras na boca do então Secretário de Estado norte-americano, Henry
Kissinger, que certa vez afirmou: “Não vejo porque temos de ficar parados
enquanto um país se torna comunista pela irresponsabilidade de seu povo”. Essa
frase de Kissinger demonstrou que o golpe fora teleguiado de Washington e que todo um
apoio bélico seria dado no caso de uma reação do governo Allende.
No 11 de setembro de 1973, nas dependências do palácio
bombardeado, o presidente chileno fez seu último discurso: “Seguramente, esta
será a última oportunidade em que poderei dirigir-me a vocês. A Força Aérea
bombardeou as antenas da Rádio Magallanes. Minhas palavras não têm amargura,
mas decepção. [...] Diante destes fatos só me cabe dizer aos trabalhadores: não
vou renunciar! Colocado numa encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a
lealdade do povo.[...] Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! Estas
são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em
vão”. Às 14:15 daquele fatídico dia, Allende cumpria sua promessa ao povo
chileno dando cabo à própria vida com um fuzil que lhe teria sido presenteado por
Fidel Castro.
Os bombardeios sobre La Moneda cessaram, mas até hoje a poeira não se
assentou por completo. Oficialmente, 40 mil foram os torturados e cerca de 3000
os mortos e desaparecidos. Restam ainda várias indagações sobre os bastidores
do golpe. Algozes permanecem impunes enquanto a História vai tratando de dar
nomes aos assassinos e torturadores anônimos. No entanto, ainda pairam
suspeitas sobre a causa da morte do escritor Pablo Neruda, não são conhecidos os
mandantes do assassinato do músico Victor Jara, não foram punidos os responsáveis
pelos assassinatos do general constitucionalista Carlos Prats e de Orlando
Letelier, só para ficar nos nomes mais notórios.
Uma certeza, no entanto, se tem hoje: o golpe de 11 de
setembro tornou possível a implantação no Chile do neoliberalismo em sua forma
puro-sangue, algo que já era buscado desde a década de 50.
No segundo quartel do século XX, sob pressão dos interesses
econômicos das grandes corporações, surgiu em alguns setores ligados à política
externa dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha um movimento cuja intenção era encaixar
os governos desenvolvimentistas do Terceiro Mundo na lógica binária da Guerra
Fria. Para os falcões que enxergavam o mundo apenas de forma bipolar, o
nacionalismo seria o primeiro passo rumo ao totalitarismo comunista. Portanto,
erradicar o desenvolvimentismo no Cone Sul, que era onde ele havia fincado
raízes mais profundamente, tornara-se uma meta. Agências como a Administração
para a Cooperação Internacional dos Estados Unidos (mais tarde USAID) estavam engajadas
em combater o desenvolvimentismo e o marxismo no plano intelectual, bem como suas
influências sobre a economia latino-americana.
No que tange ao Chile, o plano consistia em os Estados Unidos
financiarem estudantes chilenos para aprender economia na mais reconhecidamente
anti-comunista escola do mundo – a Universidade de Chicago – de forma a
combater ideologicamente as idéias de economistas “vermelhos”
latino-americanos, tais como Raúl Prebisch. Naquela universidade, predominava o
pensamento do economista Milton Friedman, um dos expoentes da Escola
Monetarista e ferrenho defensor da liberdade irrestrita de mercado e do laissez-faire. O intercâmbio firmado com
a Universidade Católica do Chile e lançado em 1956 ficou conhecido como
“Projeto Chile”. De 1957 a
1970, cem estudantes chilenos estudaram em Chicago, sendo que a partir de 1965
o Projeto se expandiu para toda a América Latina, contemplando países como
Argentina, Brasil e México. A ultraconservadora Universidade de Chicago havia
se tornado o principal destino dos jovens latino-americanos que queriam estudar
economia no exterior. Os primeiros alunos ficaram conhecidos como Chicago Boys,
e suas idéias teriam enorme impacto sobre os destinos das nações ao sul do Rio
Bravo.
Os Chicago Boys se tornaram verdadeiros embaixadores de
idéias econômicas que na América Latina ficaram conhecidas como
“neoliberalismo”. Muitos deles aderiram ao movimento fascista chileno Pátria e
Liberdade. Às vésperas do golpe, elaboraram um programa econômico que nortearia
as ações da junta militar. Tal programa, um calhamaço de quinhentas páginas,
ficou conhecido como “O Tijolo”. Dos dez autores de “O Tijolo”, oito eram
Chicago Boys. O teor desse documento era muito similar ao livro de Friedman, Capitalismo e Liberdade, e propunha,
dentre outras coisas, privatizações, desregulamentação e cortes nos gastos
sociais, a clássica tríade do livre mercado.
Em princípio, as idéias dos Chicago Boys não encontraram
campo fértil no Chile, como atestou a vitória da coalizão Unidade Popular em
1970. Só depois do golpe de Estado foi possível por em prática suas idéias.
Orlando Letelier certa vez afirmou que “os ‘Garotos de Chicago’, como são
conhecidos no Chile, convenceram os generais de que estavam preparados para
suprir a brutalidade dos militares com os ativos intelectuais que possuíam”. De
fato, no 11 de setembro de 1973,
a caserna deu as mãos à austeridade econômica para dar
origem a uma das mais violentas ditaduras do Cone Sul. Assim, ao contrário do
que muitos pensam, a primeira experiência neoliberal não se deu na Inglaterra
de Thatcher ou nos Estados Unidos de Reagan. Nasceu, isso sim, gêmea de uma
sangrenta ditadura militar. Em 1977, Pinochet entregou o Ministério das Finanças
ao chicago boy Sérgio de Castro.
Pinochet privatizou de empresas estatais e bancos a jardins
de infância e cemitérios, permitiu novas formas de especulação financeira,
abriu as fronteiras do país à importação, derrubou tarifas protecionistas,
cortou drasticamente gastos do governo, substituiu o ensino público pelos
créditos estudantis e privatizou o sistema de seguridade social. Sob uma
ditadura, o Chile tornou-se um paradigma do neoliberalismo e os experimentos
dos Chicago Boys naquele país se converteram no germe de um padrão de economia
globalizada e capitalismo sem freios que se espalharia pelo planeta.
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