Foi golpe, o resto é eufemismo

 No Paraguai, é mais fácil derrubar um presidente que recorrer de uma multa de trânsito

Por Pedro Estevam Serrano *

Normas jurídicas não se interpretam isoladamente. Eis uma lição que se aprende no primeiro ano da graduação em Direito. Como todo texto, o normativo tem um contexto sem o qual é impossível compreender seu sentido. Do mesmo modo que frases destacadas de uma página ou de um pronunciamento muitas vezes subvertem seu sentido original, normas jurídicas interpretadas isoladamente resultam na subversão de seu sentido.

No Brasil, a maioria dos analistas, mesmo os que questionam a legitimidade do ato contra Fernando Lugo, atribui um caráter de legalidade  ao golpe. Erram nesse aspecto.

Por quê? Porque interpretam isoladamente o artigo 225 da Constituição do Paraguai sem levar em conta outros dispositivos da referida Carta que também deveriam ter incidido na análise do impedimento de Lugo. Tal dispositivo estabelece o julgamento político do presidente. Como o próprio nome diz, antes de ser “político”, é um julgamento, ou seja, um processo, mesmo que não judicial. A decisão de impedimento do presidente por “mal desempenho de suas funções” só deve, portanto, ser tomada após o devido processo.


O artigo 17 da Constituição paraguaia estabelece literalmente: “No processo penal, ou em qualquer outro do qual possa derivar pena ou sanção, toda pessoa tem direito a:
    3- Não ser condenada sem julgamento prévio...
    7- ...dispor das cópias, meios e prazos indispensáveis para apresentação de sua defesa...
    8- oferecer, praticar, controlar e impugnar provas”.

O direito a um prazo razoável de defesa e de produzir e impugnar provas contenciosamente é, pelo disposto na Constituição, inerente a qualquer processo do qual possa advir sanção ou pena, mesmo que não sendo de natureza judicial penal. Por óbvio, tais normas aplicam-se também  ao julgamento político e seu processo, haja vista que a sanção é gravíssima, pois implica perda de mandato outorgado pelo povo.

Oferecer menos de 24 horas de prazo para Lugo elaborar sua defesa e não lhe dar direito à produção de provas foi uma evidente agressão aos dispositivs citados da Constituição.

O decreto n° 6.704 da Presidência da República do Paraguai, em seus artigos 17 e 20, oferece dez dias de prazo para a oferta de provas e defesa em audiência e cinco dias de prazo para recurso de reconsideração no procedimento de aplicação de uma simples multa de trânsito. Em resumo, tem mais direito de defesa quem ultrapassar um farol vermelho no Paraguai do que teve Lugo na defesa de seu mandato popular.

A decisão da sala constitucional da Corte Suprema de Justiça que rejeitou liminarmente e também sem dilação processual a ação promovida por Lugo para invalidar a Resolução n° 878/12, que estabeleceu o procedimento de tramitação de seu impedimento, proferida pelo Senado, surpreende pela carência óbvia de observância da Constituição de seu país e dos princípios mais elementares de interpretação jurídica.

Disse a decisão que o juízo político deve “reger-se exclusivamente pelo artigo 225 da Constituição”. Isso significa que a Corte Suprema mandou ignorar os outros dispositivos da Constituição, em especial o artigo 17.

À semelhança do ocorrido em Honduras, ao menos no plano institucional, o Parlamento e o Judiciário aliaram-se para, em agressão à Constituição, apear do poder um presidente legitimamente eleito sem lhe oferecer um mínimo direito ao devido processo legal.

A fraude não deixa de ser ilegal por procurar ter uma aparência de legalidade, da mesma forma que não se agride a democracia apenas pelo uso das armas.

Pode-se chamar o ocorrido com Lugo de “golpe branco”, “golpe parlamentar” ou qualquer outra expressão. Mas se trata, inequivocamente, de um inconstitucional golpe de Estado. 


* Pedro Estevam Serrano é professor da Faculdade de Direito da PUC - SP

Fonte: revista Carta Capital – n° 704, pág 38.

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