Ouro azul

Cachoeira de Baixo, Serra do Cipó, Minas Gerais (foto do autor)


Por Cléber Sérgio de Seixas


No dia 12 de abril de 1961, Yuri Gagarin, a bordo da nave Vostok-1, olhou a Terra do espaço e constatou que ela era azul. O cosmonauta russo não estava errado. O tom azul que ele observou do espaço corresponde à água que cobre 70% da superfície terrestre. Essa imensidão azul que Gagarin viu equivale a 97% da água do planeta - água salgada e imprópria para consumo humano. Os outros 3% são água doce, dos quais apenas 1% é potável. Os 2% restantes constituem as águas congeladas nos pólos e geleiras.

Levando em conta que a maioria das espécies existentes em nosso planeta dependem de água para sobreviver e considerando as grandes reservas desse mineral aqui encontradas, poderíamos com toda ousadia chamar nossa aldeia global de Planeta Água. A parte ruim dessa história fica por conta da constatação de que nossas reservas de água potável estão cada vez mais escassas e que a ganância corporativa intenta lançar seus tentáculos sobre elas. Um exemplo de tal expediente ocorreu há doze anos.

Em janeiro de 2000 um aumento nas tarifas de água da cidade de Cochabamba serviu de estopim para a revolta dos habitantes daquele município, o terceiro maior da Bolívia. O incremento de mais de 300% no valor das contas de água levou às ruas trabalhadores urbanos e do campo, intelectuais, estudantes, sindicalistas indígenas e outros para protestar contra os aumentos abusivos.

A mobilização foi o ponto culminante de um processo que iniciou com a privatização da Semapa, empresa pública de fornecimento de água. Pelos contratos, até mesmo a água da chuva era de propriedade das empresas do consórcio multinacional Aguas del Tunari, ficando os moradores proibidos de armazenar para consumo próprio o mais essencial dos minerais, que do céu descia gratuita e abundantemente.

O Aguas del Tunari, encabeçado pela empresa estadunidense Bechtel, anunciou um projeto de 300 mil dólares para resolver os problemas de abastecimento hídrico da região, apesar de, quando da assinatura do contrato, apresentar um capital de apenas 10 mil dólares, o que gerou fortes suspeitas de corrupção.

A revolta dos cochabambinos durou cerca de três meses e ficou conhecida como Guerra da Água. Deixou um saldo de dois jovens mortos, vários feridos e dezenas de encarcerados, chegando ao fim após o governo anunciar o fim do contrato com o consórcio. Apesar da vitória do povo de Cochabamba sobre o neoliberalismo, a maioria dos moradores daquela cidade ainda hoje se abastece de água por meio de caminhões pipa. No entanto, a Guerra da Água tornou-se um epísódio emblemático para o discurso anti-globalização e alter-mundista, evocado sempre que a sanha privatista tenta se apropriar dos recursos hídricos do Planeta.

Uma lição deve ser tirada desse episódio: a escassez de água, no futuro, pode levar a conflitos violentos. Não são poucas as visões apocalípticas que vislumbram que as guerras mundiais serão pela posse das fontes de água. Contribuem para esse cenário dantesco a falta de políticas públicas voltadas para saneamento e tratamento da água.

A experiência boliviana provou de forma cabal que não há limites para a ganância corporativa, que inclui em seu rol de bens privatizáveis algo até então de gratuidade inquestionável: a fonte de vida da maior parte dos seres vivos deste planeta. A julgar pela privatização da água, o que mais planejam privatizar? O ar? A vida?

Diante do cenário que vai se descortinando, pouco se tem a comemorar neste Dia Mundial da Água. Comemorado há 22 anos, neste dia não faltam campanhas orientando quanto a hábitos que promovam o consumo responsável e sustentável deste mineral. Essas exortações, na maioria das vezes, são direcionadas ao cidadão comum, mas pouco é dito às corporações, grandes devastadoras do meio ambiente e poluidoras das águas. Pouco adiantará se a população mudar seus hábitos de consumo de água se as grandes indústrias continuarem a poluir os lençóis freáticos e os cursos d’água. Seguindo esse ritmo, daqui há um século o que verá um astronauta ao olhar a Terra do espaço, tal como fizera Gagarin há 51 anos?

As decisões quanto ao futuro da água devem ser tomadas agora por governos, empresas e cidadãos. Como afirma o teólogo Leonardo Boff, temos que sair da era tecnozóica e iniciar a era ecozóica. O desenvolvimento humano, capitaneado pela técnica, tem que levar em conta, a partir de agora, o desenvolvimento do planeta, pois já não é possível falar em desenvolvimento humano dissociado da sustentabilidade planetária. Perceber a simbiose homem-terra é essencial para o futuro das espécies terrenas. Por último, vale lembrar a frase proferida por um índio norte-americano: “Tudo o que fere a terra, também ferirá aos filhos da terra”.
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Comentários

Anônimo disse…
Aproveitei a manhã deste sábado, 07 de abril, para conhecer a cidade de Cabreúva (SP). Lugar de bela topografia, bonitas paisagens. Dali segui para Itu pela Estrada dos Romeiros, que corre margeando o Tietê. Estrada que exige cuidado - é estreita, pista simples, vários ciclistas partilhando com os carros a faixa estreita de asfalto. Se você tem estômago fraco, não pegue esse caminho. É deprimente ver, ao longo do percurso, o Tietê coberto de espuma. Verdadeiro esgoto a céu aberto. Um tesouro tornado lixo.