Os bichos da rua

Moradores da Praça Iron Marra são socorridos após o atentado. (Foto: EM)

O bicho

Manuel Bandeira

Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa;
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.


Por Cléber Sérgio de Seixas

Certa vez, picharam os seguintes dizeres em um dos muros da cidade de La Paz, Bolívia: “Combata a pobreza, mate um mendigo!”. No dia 20 de abril de 1997, um dia após as comemorações do Dia do Índio, um grupo de cinco jovens de classe média-alta, sendo um deles menor de idade, resolveu colocar em prática esta pérola do humor negro ateando fogo ao corpo de Galdino Jesus dos Santos, também conhecido como “Índio Galdino”. Em entrevista à imprensa, um dos assassinos disse que o grupo só havia feito aquilo por acreditar que se tratava de um mendigo, não de um índio. Com esta torpe justificativa, os jovens demonstraram nenhum apreço pela vida humana, além de um arraigado preconceito contra moradores de rua.

Quatorze anos depois, encontramos um Brasil um pouco diferente, com uma nova distribuição de renda, com milhões de recém-chegados à classe média e, quem sabe, com menos moradores de rua, mas com preconceitos semelhantes aos que motivaram o assassinato do índio Galdino de Jesus.

No dia 15 de maio último, oito moradores de rua que viviam na Praça Iron Marra no bairro Santa Amélia, Belo Horizonte, foram intoxicados após terem ingerido cachaça misturada a uma substância granulada, ao que tudo indica, um veneno conhecido como “chumbinho”. Socorridos por moradores da região, as vítimas apresentavam um quadro grave, sentindo fortes dores abdominais e evacuando e vomitando sangue.

A tentativa de envenenamento não é a primeira. Meses antes, havia sido deixado um marmitex com comida próximo à mesma praça. Desconfiados, os sem-teto deram o alimento para um cachorro, que comeu e morreu pouco tempo depois. A julgar pelo tipo de veneno utilizado, é possível que os autores do atentado tenham confundido seres humanos com indesejáveis roedores. Infelizmente, é exatamente dessa forma que algumas pessoas enxergam a população em situação de rua. Os que têm pouca ou nenhuma sensibilidade social, de fato, consideram seres repugnantes os moradores de rua. Advêm desse preconceito violências como a que ocorreu na Praça Iron Marra.

Engana-se quem acredita que a violência para com moradores de rua parte apenas da sociedade civil. Reportagem do jornal Hoje em Dia de 30/05/2011 denunciava que fiscais da Gerência Regional de Ações Sociais do hipercentro de Belo Horizonte estariam tirando à força documentos, objetos pessoais e até cobertores da população de rua da região Centro-Sul. Quem não se lembra das rampas “antimendigo” construídas em 2005 durante a gestão de José Serra à frente da prefeitura de São Paulo? E o que dizer dos assassinatos e desaparecimentos de mendigos promovidos por esquadrões da morte no início dos anos 60, supostamente a mando de Carlos Lacerda, o então governador do estado da Guanabara?

São muitas as variáveis que levam indivíduos às ruas: laços familiares rompidos pela violência doméstica, consumo de drogas e todos os seus desdobramentos, desemprego, problemas mentais e de saúde etc. Aqueles cujo “lar” é a rua, misturados ao lixo e abdicando da dignidade em troca de uma porção de comida - mesmo se esta se tratar de sobras em meio a detritos -, vivem em constante vulnerabilidade social, degradando-se física e moralmente. São os sem-teto, os sem-nome, condenados à rua e à sarjeta por um sistema sócio-econômico estruturalmente excludente.

Um dos indicativos mais marcantes da desigualdade social de um país é o tamanho de sua população de rua, uma chaga que revela que, a despeito da opulência do sistema, ainda há os que sobrevivem das sobras que caem da mesa dos mais abastados.

Nesse contexto, o perigo reside na criminalização da pobreza e na naturalização da violência para com a população em situação de rua, expediente que está se revelando mais rotineiro do que se supõe.

Somente políticas públicas que ajam estruturalmente poderão evitar que pessoas vão para as ruas e sofram com a estigmatização e a violência. Da mesma forma, campanhas educativas poderiam contribuir para diluir o preconceito daqueles que consideram bichos os moradores de rua.
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