Memória, verdade e justiça: a experiência argentina - segunda parte

As mães da Praça de Maio ainda cobram notícias sobre seus filhos desaparecidos


Por Eduardo Luiz Duhalde *

A MEMÓRIA

Uma peça nodal dessas políticas, que não é asséptica nem neutra, é o combate pela Memória.

Os atores do privilégio e da exclusão, bem como da conseqüente atividade antidemocrática e repressiva ao longo do século XX e até agora, tentaram, juntamente com o assalto às instituições de 1976, fazer uma leitura da história legitimadora de seu agir.

A partir dessa perspectiva, buscaram fazer toda sua violência sistemática parecer mera resposta de defesa da nação contra a irracional violência militante e social, à qual não hesitam em qualificar como gerada pela subversão apátrida. Como eixo dessa postura, aparece a defesa desavergonhada do terrorismo de Estado. A partir disso, pretenderam impor a organização do esquecimento, apagando tudo o que se faça parecer nu em seu modelo genocida de repressão e exclusão.

Diante dessa manipulação da História e das tentativas de construção de uma falsa memória coletiva, é dever da democracia social e dos governos republicanos opor, a essa visão contrabandeada dos fatos, um forte resgate da memória histórica, assentado na irrefutável verdade do ocorrido, trazendo à luz e convertendo em lembranças permanentes aquilo que os sujeitos populares, as vítimas levam como bandeira reivindicativa e reparatória, ao longo de décadas de luta pela verdade e pela justiça.

Não há receita para a construção de uma memória histórica fora do esforço por estimulá-la, resgatar suas marcas, muitas vezes cobertas pelo esquecimento, relembrando o passado e pondo à luz a continuidade do acontecer histórico e seus pontos essenciais, que não devem deixar de ser parte de nosso presente, como passado vivo.

Claro está que essa tarefa tem um rigor, em sua elaboração, que não é simples espontaneidade da lembrança. Narração simbolização na ressignificação do horror não é a mera lembrança de fatos do passado. Sua iluminação significante implica muito mais: analisar, segundo as Ciências Sociais, a sistematicidade de sua prática ilegal e de sua persistência no tempo, pelos olhares cruzados dos atores sociais vítimas.

A Memória não busca “coisificar” a História em forma gélida e estática, mas sim convertê-la em elemento dinâmico e operativo, como capacidade de atuar sobre a vida social, sustentando o reconhecimento coletivo da identidade e as projeções futuras.

A memória é a vida, sempre levada por grupos vivos e, por isso, em evolução permanente, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento: é um fenômeno sempre atual, alimenta-se de lembranças indefinidas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas. É sensível a todos os modos de transferência, censura ou projeção. A memória instala a lembrança no sagrado, como aponta Pierre Nora.

A memória também está ligada à construção da sociedade que queremos. Quando falamos de terrorismo de Estado, estamos fazendo referência também à metodologia impulsionada por setores políticos e econômicos concentrados, que, por meio das Forças Armadas, impuseram, criminal e maciçamente, um modelo de sociedade ferozmente excludente e totalmente dependente.

E, hoje, apesar de essa experiência genocida, que forma parte do nosso passado lacerante, estar sendo condenada por meio de processos que a Justiça leva a cabo, não alcançou esses fatores político-econômicos que impulsionaram o golpe de Estado e que estão entre nós. Hoje usam outros instrumentos, outros meios, mas o combate continua.

O desafio que hoje enfrentamos na Argentina é construir um legado do nunca mais, um discurso narrativo nem cristalizado nem estático, do qual possam reapropiar-se as novas gerações, com o olhar do presente que queiram viver e que lhes garanta, assim, o direito de conhecer sua própria História e de receber a memória coletiva, sob os princípios de Memória, Verdade e Justiça e da vigência irrestrita dos Direitos Humanos.

A designação, como tais, das Bases e Quartéis onde funcionaram Centros Clandestinos de Detenção e Extermínio, mediante placas e pilares, a conversão dos grandes centros clandestinos emblemáticos em Espaços da Memória, como a Escola de Mecânica da Armada (ESMA), em Buenos Aires e La Perla, em Córdoba, é parte da obra que realiza a Secretaria de Direitos Humanos, por meio do Arquivo Nacional da Memória.

Esse arquivo é a custódia pública de toda a documentação recuperada sobre a repressão ilegal, seus autores e suas vítimas. Mais de dez milhões de folhas constituem seu acervo documental, fonte de investigação e, ao mesmo tempo, prova documental de todos os processos judiciais.

Assim, a memória tem um sentido coletivo de recuperação da História a partir do presente, de ensino e de caminho em direção ao futuro. É, ao mesmo tempo, autodefesa de nossa prática diária e assentamento das bases de uma sociedade futura sobre os pilares do aprofundamento democrático, da vigência plena dos Direitos Humanos e dos princípios de tolerância, da solidariedade e do respeito ao outro.

(continua em outro post)


* Eduardo Luis Duhalde é advogado, historiador, jornalista e secretário de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, Segurança e Direitos Humanos da Argentina

Fonte: Revista Direitos Humanos - nº 4 - dezembro 2009

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