Memória, verdade e justiça: a experiência argentina - primeira parte

A ESMA, antigo centro de detenções e torturas em Buenos Aires, é hoje um memorial para recordar os tempos da ditadura argentina.


Por Eduardo Luis Duhalde*

O Estado terrorista e suas consequências

É impossível compreender o processo de Memória, Verdade e Justiça que se leva adiante na Argentina, talvez por sua profundidade quase incomparável na realidade internacional atual, sem a prévia caracterização do que temos denominado como Estado Terrorista Argentino.

A dimensão da tragédia ocorrida em meu país, por sua abrangência, só pode se comparar, na América Latina do século XX, com a sofrida pelo povo guatemalteco ao longo de mais de cinqüenta anos, a partir da derrocada de Jacobo Arbenz, em 1954.

Diferentemente daquele, o processo repressivo ilegal argentino teve um período de implementação muitíssimo mais concentrado e, ao mesmo tempo, de elaboração e de planejamento sistemáticos, que adquiriu formas específicas e singulares dentro do estado de exceção na América Latina, que jogou por terra os regimes institucionais democráticos.

O regime militar instaurado a partir de 24 de março de 1976, com sua prolixa e sistemática preparação e a crescente ação repressiva ilegal, se baseou em uma elaborada teoria, que configurou o Estado terrorista e sua face clandestina permanente.

Produzido no decorrer de uma crise política catastrófica e fundado na necessidade de ajustes permanentes no modo de acumulação de capital para a manutenção de uma ordem social injusta, trouxe, em si, mudança substancial de formas: configurou-se como Estado terrorista, partindo de pressupostos que se esgrimiram como permanentes e que contradiziam as bases fundamentais do Estado democrático.

Afirmou-se sobre o princípio de que sujeição à lei, à publicidade dos atos e a seu controle judicial incapacitaria definitivamente o Estado para a defesa dos interesses da sociedade. Em conseqüência, apareceu, como substrato de tal concepção, a necessidade de estruturação – quase com tanta força como a do Estado público – do Estado clandestino e, como instrumento deste, o terror como método. Assim, o Estado terrorista é a culminação degenerativa do Estado militar “eficiente”.

O trágico resultado registra, aproximadamente, trinta mil detidos desaparecidos, assassinados, de todas as idades e condições sociais, a maior parte deles arremessada com vida ao mar, depois de inenarráveis processos de torturas física e mental, ou fuzilados e enterrados clandestinamente; outros dez mil detidos prisioneiros, a maioria deles sem processos jurídicos, apenas “à disposição do Poder Executivo”, nos presídios da República; mais de duzentos mil cidadãos exilados e um número superior de demitidos de seus trabalhos, públicos e privados; professores e estudantes expulsos das escolas, homens e mulheres que aumentaram “as listas negras” de “mortos civis”, sem acesso a empregos públicos ou privados por ter sido considerados vinculados à “delinqüência subversiva”, em decorrência da militância política, social, ou de sua atividade intelectual, qualificada como dissidente, ou incompatível com o processo militar em curso.

Mas o regime militar também gerou um processo civil de resistência, encabeçado por um emergente Movimento de Direitos Humanos liderado, como expressão pública, pelas Mães da Praça de Maio, que simbolizam os fatores éticos e políticos violados e a vontade de um povo oprimido, mas não vencido. Esse processo de resistência se intensificou depois da derrota da ditadura em uma guerra irresponsável pela recuperação das Ilhas Malvinas, que finalmente levou os militares ao abandono do governo, em dezembro de 1983.

A recuperada democracia constitucional, presidida por Raúl Alfonsín, criou logo em seguida, a pedido das organizações de Direitos Humanos, a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), primeira constatação oficial da dimensão do extermínio coletivo levado adiante pelos militares usurpadores do poder.

Depois disso, era inevitável o julgamento das três juntas militares que se haviam revezado no poder. Em um processo histórico e sem precedentes no mundo, um tribunal judicial condenava os chefes de uma ditadura militar sangrenta a penas de prisão perpétua, como no caso de Videla e Massera, seus principais responsáveis.

O governo civil se deu por satisfeito com esse enorme gesto e com sua ressonância simbólica. As vítimas sobreviventes, os familiares dos presos desaparecidos e assassinados, o movimento dos direitos humanos e amplos setores da sociedade civil, não. E passaram a promover a continuidade dos julgamentos dos genocidas, até que se fizeram ouvir as demandas militares clamando por impunidade.

O poder político foi sensível a essas pressões, ditando as chamadas leis de Obediência Devida e Ponto Final, complementadas com indultos concedidos pelo presidente Menem aos comandantes condenados. A partir daí, abriu-se uma etapa de mais de quinze anos de luta de amplos setores da sociedade civil, encabeçada pelas Mães, as Avós e os demais organismos de Direitos Humanos, contra a impunidade.

Essa impunidade começou a chegar ao fim quando Nestor Kirchner assumiu a Presidência da República, colocando como eixo das políticas públicas de seu governo os princípios da Memória, Verdade e Justiça. Tratava-se não somente de cumprir com as responsabilidades do Estado pela reparação, previstas nos instrumentos internacionais subscritos pela Argentina – e que gozam de status constitucional – como também de recuperar os fundamentos éticos do Estado democrático, inseparáveis da vigência dos Direitos Humanos.

O reconhecimento da nulidade das chamadas leis de perdão, pelo Parlamento, e sua declaração de inconstitucionalidade por parte da Corte Suprema de Justiça, colocaram os três poderes do Estado no caminho de pôr fim à impunidade. A reabertura dos julgamentos por crimes contra a humanidade, imprescritíveis, foi o passo seguinte. Hoje, a Memória, a Verdade e a Justiça constituem o corpo doutrinário efetivado em políticas estampadas e irreversíveis.

Façamos uma breve revisão.

(continua em outro post)


* Eduardo Luis Duhalde é advogado, historiador, jornalista e secretário de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, Segurança e Direitos Humanos da Argentina

Fonte: Revista Direitos Humanos - nº 4 - dezembro 2009

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