DEMOCRACIA E CIDADANIA

Por enquanto nossa democracia se resume a voto


Por João Antônio de Paula*

Justificar
Desde que surgiu, ou pelo menos desde que foi fixado conceitualmente, no início do século 16, com Maquiavel, o Estado moderno tem sido objeto de controversas interpretações. Se com Thomas Hobbes ele é afirmado como um monstro necessário, capaz de conter a violência inata da condição humana, com Jacob Burckhardt ele é visto como “obra de arte”, como construção humana equivalente e contemporânea das grandes obras do Renascimento. Tanto essas visões divergentes quanto suas variantes explicitam algo essencial, que é o fato de o Estado estar longe de ser instrumento neutro ou universal. Com efeito, com exceção da visão de Hegel, que fez do Estado, não de qualquer Estado em particular, a realização da liberdade, todas as teses que buscam apreendê-lo não escapam de reconhecer nele aspectos coercitivos ou particularistas. Como se vê, por exemplo, na visão de Max Weber, que o define como “monopólio legítimo da violência”, ou na perspectiva de Marx e Engels, que, caracterizando o Estado burguês, viram-no como “comitê executivo dos negócios comuns da burguesia”.

Os acontecimentos recentes decorrentes da crise econômica instalada em 2008, a decisiva e pronta ação dos governos no salvamento do grande capital, a impressionante “socialização das perdas” praticada pelos governos de países capitalistas mundo afora têm algo de desmitificador ao denunciar a longa e monótona cantilena neoliberal, que dizia querer o Estado mínimo, a total liberdade dos mercados. Entregues a seu único e exclusivo critério, desregulamentados e imunes a todo controle, os mercados voltaram a levar o capitalismo para crise de grandes proporções, que está longe de estar encerrada e que seria ainda mais destrutiva, se não tivesse havido a gigantesca transferência de recursos públicos para o salvamento dos interesses do capital.

Instalada a crise, reconhecidos seus determinantes como decorrentes da farra neoliberal, das suas autopropaladas “milagrosas” inovações financeiras, que pareciam poder produzir riqueza pela simples manipulação de “capital fictício”, os ideólogos e gestores do capital falam, novamente, como foi no contexto da crise iniciada em 1929, em regulação, controle, presença do Estado.

De fato, todos os que compreendem, ainda que parcialmente, o funcionamento da economia capitalista sabem do papel central, insubstituível do Estado na constituição, desenvolvimento e sustentação do capitalismo em variados sentidos.

Nos séculos 17 e 18, momentos particularmente ricos na compreensão do Estado burguês, defrontaram-se duas perspectivas no referente ao papel e significado do Estado: a liberal e a democrática. No campo liberal, Locke disse que o papel do Estado, sua decisiva legitimidade, decorreria de sua capacidade de garantir os três direitos inalienáveis dos indivíduos: o direito à vida, o direito à liberdade e o direito à propriedade. Apenas na medida em que garantisse esses direitos o Estado se justificaria, sendo legítimo o direito à rebelião todas as vezes que o Estado atentasse contra esses direitos, como foi o caso na Revolução Inglesa do século 17.

Em Thomas Jefferson, na Declaração de Independência dos Estados Unidos, a tríade de direitos de Locke é modificada, superando o liberalismo estrito, ao dizer que os direitos inalienáveis dos indivíduos são o direito à vida, o direito à liberdade e o direito à busca da felicidade, em chave inspirada em Rousseau, que foi o primeiro teórico do Estado a vê-lo como sendo legítimo na medida em que fosse a realização da vontade geral, a qual deveria se sobrepor às vontades individuais, particulares. O limite dessa posição encontra-se em Hegel, quando disse que a liberdade, a verdadeira e legítima liberdade, pressupõe a liberdade de todos, que não há efetiva liberdade, que não seja um direito de todos, que não há liberdade autêntica se prevalecem constrangimentos e coerções, violência e alienação.

É a partir desse ponto que se afirma a posição de Marx, ao dizer que a efetiva realização da liberdade passa pela superação das determinações histórico-materiais, que, sendo os alicerces do capitalismo, determinam-lhe sua organização social, suas formas de consciência e representação, suas estruturas de poder.

Todas as questões mencionadas aqui têm um inequívoco conteúdo histórico. São objetos de disputas permanentes, como está exemplarmente colocado na tese de T. H. Marshall sobre a cidadania. Em texto de 1965, Marshall reconheceu a existência de três dimensões da cidadania: a) a cidadania civil, que inclui os direitos e as liberdades individuais, de palavra, culto, propriedade, o direito de buscar a justiça, sempre que seus interesses tenham sido lesados; b) a cidadania política, referida aos direitos políticos e eleitorais; c) a cidadania social, que contempla o direito ao bem-estar social, o acesso aos bens culturais, à educação, à saúde, à habitação. A esses direitos, é preciso agregar, hoje, o direito ao meio ambiente saudável, a busca da sustentabilidade.

Trata-se, ao considerar essas dimensões da cidadania, de reconhecer as mutações da própria configuração do Estado, que, de estritamente liberal, foi demandado a se tornar democrático e, finalmente, de bem-estar social. Diga-se, desde logo, que estas mutações do Estado burguês não foram naturais, senão que resultado de pressões, de lutas, de mobilizações político-sociais. Uma comprovação disso está exemplarmente posta na frase do político britânico Arthur Balfour: “A legislação social, como a concebo, não deve ser apenas diferenciada da legislação socialista, mas é seu opositor mais direto e seu antídoto mais eficaz”.

De fato, são as lutas sociais que fazem ampliar os direitos sociais: foi a luta socialista, a partir do século 19, que obrigou os governos, a partir da Alemanha, na década de 1880, a instituírem políticas sociais, trabalhistas, previdenciárias, que foram chamadas de bem-estar social. Foi a Revolução Mexicana de 1910, que não só deu início a um massivo processo de reforma agrária, depois revertido, mas que, em 1917, está na base da Constituição Mexicana, a primeira do mundo a estabelecer direitos sociais.

Tem sido lenta, procrastinada, seletiva, contraditória a marcha da implantação e alargamento dos direitos sociais, dos direitos da cidadania no Brasil. A escravidão no Brasil prolongou-se até 1888 e não teve como seu desdobramento necessário a reforma agrária, que teria feito do ex-escravo cidadão de direitos efetivos. As liberdades previstas na Constituição de 1891 foram só as civis e políticas, e, mesmo assim, restringidas porque se vedou o voto aos analfabetos e às mulheres. O Código Civil, de 1916, foi, sobretudo, o instrumento de garantia dos direitos da propriedade. A legislação trabalhista dos anos 1930/40 abarcou apenas os trabalhadores urbanos, e se, efetivamente, significou o atendimento às lutas e demandas dos trabalhadores, a legislação trabalhista foi instrumento de controle e manipulação dos sindicatos.
De fato, Estado de bem-estar-social, no sentido próprio que este significa, nunca tivemos no Brasil: seguro e proteção aos trabalhadores, à infância, aos idosos e aos desempregados; assistência à saúde de qualidade, como também educação pública de qualidade, crítica e pluralista; assistência social e política habitacional digna e massiva.

Desde 1850, o Brasil vem experimentando significativas modificações políticas, econômicas e sociais-culturais, que resultaram no país moderno, majoritariamente urbano e significativamente industrializado de hoje, sem que isso tenha modificado a condição dependente, periférica do desenvolvimento capitalista no Brasil. A superação do subdesenvolvimento – use-se a tese de Amartya Sen, incorporada por Celso Furtado – pressupõe a distribuição primária da renda e esta significa tanto a distribuição da renda e da riqueza, quanto a universalização de habilitações que permitam a autônoma e criativa apropriação das novas tecnologias. Nesse sentido, trata-se de atualizar a agenda para o pleno desenvolvimento econômico, político, social e cultural brasileiro, a partir da compreensão da centralidade de reformas, como a agrária e a urbana, que incorporem o direito à moradia, ao transporte público e ao saneamento, mas que seja, também, a efetiva apropriação da cidade, o predomínio dos espaços públicos, das áreas verdes, dos espaços de lazer e convivência. Finalmente, constate-se que estes objetivos dependem da luta e da mobilização social, que são elas, e apenas elas, que garantem a plena emancipação social, como liberdade e solidariedade, que a democracia, como disse Claude Lefort, deve ser, sobretudo, “invenção permanente de direitos”.


*João Antônio de Paula é economista é pró-reitor de Extensão da UFMG.

Fonte: Jornal Estado de Minas - 10 de julho de 2010.

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