Como nascem os Dungas

Por Miguel Enrique Stédile*

As Copas do Mundo são momentos propícios para identificar valores e princípios difundidos pela Indústria Cultural. A cobertura jornalística enfatiza o indivíduo na livre iniciativa – num suposto “dom” que pode emergir a qualquer momento numa decisiva jogada individual – em analogia às promessas do capitalismo: individualmente, há margens para mobilidade e ascensão social. Entretanto, se esta é a regra para o sucesso – vide os casos de Romário em 94 e Ronaldo em 2002 – ela também é para o fracasso, como o inferno midiático que espera por Felipe Mello.

O volante expulso no último jogo viverá o mesmo tratamento sofrido por Dunga. Não este Dunga, o técnico, mas o volante que em 1990 foi responsabilizado pelo futebol burocrático e pouco competitivo da Copa na Itália. Ou ainda, como Cerezo em 82, Ronaldo em 98 e Roberto Carlos em 2006. Os três jogadores ainda puderam voltar a receber o tratamento típico da indústria cultural como “histórias de superação”.

Com um estilo medíocre e pouco técnico, Felipe Mello dificilmente terá a mesma sorte. Deverá se juntar ao purgatório aonde foram condenados o goleiro Barbosa e os zagueiros da Copa de 1950, todos negros, responsabilizados pela derrota para o Uruguai em pleno Maracanã.

Para além do que pautam os meios de comunicação, a derrota da seleção brasileira deveria servir como momento de reflexão. Em 50, a derrota em meio ao ufanismo que anunciava nosso suposto pertencimento à civilização branca ocidental pôs em cheque tanto a idéia de que havíamos assimilado os parâmetros da modernidade, quanto a harmônica democracia racial que supostamente nos unia. A idéia da “síndrome de vira-latas”, cunhada por Nelson Rodrigues, explicitava justamente este sentimento de incapacidade em nos unirmos às “melhores nações do mundo”, em termos de desenvolvimento. A busca por culpados negros no episódio escancarava a construção que justificava nossa debilidade pela mistura racial.

Em 1998, a gerência das empresas multinacionais de equipamento esportivo – notadamente a Nike – sob a seleção também foi questionada e apontada como provável responsável pela perda do pentacampeonato. Na época, torcedores recepcionaram a seleção derrotada com símbolos da empresa e a pergunta se esta era a nossa bandeira. Em 2006, perguntávamo-nos se aqueles jogadores que haviam enriquecido tanto no mercado mundial de mão-de-obra futebolística ainda poderiam possuir “patriotismo” necessário ou ganas de conquistar uma Copa do Mundo. O ambiente da concentração dominado pelas empresas patrocinadoras, exigindo treinos-espetáculos, e empresários em negociações individuais também foram apontados como causas da falta de vigor patriótico.

Talvez a reflexão que a derrota de 2010 nos ofereça seja questionarmos o suposto destino de sermos inevitavelmente campeões. Enquanto as seleções de Argentina e Japão, por exemplo, foram recepcionados por milhares de torcedores, mesmo com a derrota, a nossa seleção é recebida com hostilidade. O fracasso da nossa seleção será sempre justificado pela falha individual ou alguma ação externa que nos impediu de cumprir um destino inevitável: a conquista da Copa. Esta idéia – a histórica – busca na identidade nacional acionada pelo futebol e na construção de que somos os melhores do mundo neste esporte (e que talvez só nisso sejamos os melhores, segundo este pressuposto) para impulsionar o consumo desenfreado de TVs e bugigangas a cada Copa. Talvez reconhecer nossa humanidade – e logo, a possibilidade de não vencermos sempre – seja o melhor saldo desta derrota.


* Miguel Enrique Stédile é historiador.

Fonte: Agência Brasil de Fato

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