PRA FRENTE, BRASIL!

O ditador Médici cumprimentando os heróis do tri

Por Lucilia de Almeida Neves Delgado

Junho de 2010: uma euforia coletiva, nas cores verde, amarela e azul, toma conta dos brasileiros em diferentes cidades e regiões do país. Milhares de crianças brasileiras dedicam o melhor do seu tempo de lazer a preencher álbum de figurinhas sobre as Copas do Mundo e as Seleções Brasileiras. Como dizem os pais, virou uma cachaça. Nas ruas, camelôs, lojas de brinquedos, roupas e artigos esportivos exibem para os consumidores, em simples balcões improvisados ou em sofisticadas vitrines, uma quantidade enorme de itens referentes à Seleção Brasileira: camisas, bolas, copos, perucas, bandeiras, bonés, apitos e cornetas, como ímãs, atraem os olhares e os desejos de jovens, adultos, idosos e crianças. Todos cativos do sonho comum à maioria dos brasileiros de que o Brasil possa, uma vez mais, vencer uma Copa do Mundo.

Em meio a um clima de crescente expectativa festiva, o técnico Dunga, há poucas semanas, anunciou a convocação do time que defenderá as cores nacionais na África do Sul. Bastou tal fato para que milhares de brasileiros se transformassem em técnicos de futebol, o que, de certa forma, o são na realidade. Uma chuva de palpites futebolísticos sobre a composição da seleção passou a incrementar conversas nas mesas de bares, internet, estações de rádio e de televisão, pátios de escolas, universidades, portas de fábricas, redações de jornais e revistas e recintos de repartições públicas.

Assim também aconteceu há quatro décadas, quando o Brasil conquistou o tricampeonato de futebol no México. A Seleção Brasileira de 1970 foi a primeira a alcançar tal façanha. Trouxe como prêmio, de forma definitiva, a Taça Jules Rimet para o Brasil.

Naqueles idos de 1970, no dourado dos meus 18 anos, acompanhei, com o coração tomado por sentimentos ambíguos, o início do desenrolar de uma Copa do Mundo que, hoje sei, foi para mim a melhor das que pude acompanhar. Os sentimentos contraditórios, que doíam na minha alma, não eram somente meus. Muitos jovens da minha geração compartilharam o dilema, que hoje pode parecer absurdo, de torcer pela seleção, ou então de fazer um enorme esforço para ficar alheio ao feitiço da ginga, criatividade e espantosa competência estratégica do futebol brasileiro de então. Na verdade, os tempos, como se diz, eram “bicudos”, e a confusão entre futebol e política, uma realidade. Nosso temor era o de que, ao torcer pelo Brasil no futebol, estivéssemos tomando uma atitude de legitimação do regime autoritário que, em 1964, fora implantado no Brasil.

Mas a força da emoção positiva falou mais forte e, em poucos dias, a maioria de nós estava plenamente envolvida pelo futebol praticado pela Seleção Brasileira de 1970, por muitos considerada a melhor de todos os tempos. E não havia mesmo como fugir daquela realidade fascinante, pois os jogos transmitidos pela televisão enfeitiçavam e comoviam a alma nacional. Ao fim do torneio, quando o Brasil derrotou os italianos, em êxtase coletivo, festejamos nas ruas de todo o Brasil a vitória que nos fez a todos, inclusive os brasileiros filhos de outras gerações, ainda por nascer, para sempre, tricampeões mundiais.

A seleção de 1970, ao conquistar, em apoteose, a taça Jules Rimet, tornou-se um mito responsável pelo feito heroico de uma vez mais coroar o futebol brasileiro como o melhor do mundo. Mas seu grande feito, com forte cobertura da mídia, foi, de fato, apropriado pelo governo federal e utilizado como propaganda do regime militar. Nunca o futebol foi tão bem explorado em termos políticos como nos idos de 1970. A taça Jules Rimet, quando da chegada festiva dos jogadores ao Brasil, foi erguida pelo próprio presidente de então, Emílio Garrastazu Médici. A realidade da política se encarregou de demonstrar, sem qualquer disfarce, que nossos temores não eram infundados.

A estratégia de publicidade e busca da legitimação por um governo ditatorial não deixou de captar a emoção coletiva nacional e divulgá-la como propaganda oficial. Mas, apesar da confirmação de nossas apreensões, o sabor da vitória visita-nos com especial alegria. Sabemos que acima dos governos de ocasião, mesmo que ditatoriais, existe uma identidade brasileira que, a despeito das dificuldades peculiares a um país tatuado por contradições e desigualdades, tem no gosto pelo futebol um de seus fundamentos.

O ano de 1970 foi um dos mais tensos da nossa história. Sucedeu a edição do Ato Institucional número 5, o AI-5, que em dezembro de 1968 consolidou o autoritarismo do ciclo militar caracterizado por desmandos políticos e desrespeito aos direitos humanos. Os cinco primeiros anos da década de 1970, não sem razão, ficaram para sempre registrados na História brasileira como “anos de chumbo”.

Uma profunda tensão política contaminou o Brasil naquele tempo. Inúmeros jovens, impedidos de fazer oposição pública ao regime autoritário, migraram da política estudantil para a luta armada. Acreditavam que, com seu voluntarismo revolucionário, poderiam vencer ou ao menos desestabilizar um regime político que lhes tirara, e a todo o povo brasileiro, o direito à liberdade de organização e expressão.

Naquele tempo, perseguições e prisões tornaram-se rotineiras. Sem direito a habeas corpus, a maioria dos presos era submetida a torturas. Um círculo vicioso tomou conta do cotidiano político do Brasil. O governo prendia e torturava. Militantes de organizações de esquerda, ainda em liberdade, desenvolviam estratégias para libertar seus companheiros que, presos, estavam à mercê da violência institucionalizada.

Ocorreram então os famosos sequestros políticos de diplomatas. O objetivo era trocar o sequestrado por presos políticos. Em 1969, foi sequestrado o embaixador americano, Charles Burke Elbrick. Sua liberdade correspondeu à libertação de 15 presos políticos, que, ao deixarem o Brasil, foram imediatamente banidos, perdendo, portanto, sua cidadania. O ano de 1970 começou com outro seqüestro, o do cônsul do Japão Nobuo Okushi, que, após negociações que levaram à sua libertação, propiciou a libertação de cinco presos políticos. De fato, aquele tempo não era só de alegria futebolística. Na sequência dos sequestros, exílios e banimentos, a propaganda governamental divulgou, com grande estardalhaço, uma frase que diz muito sobre a polarização política de então. Em letras garrafais estampadas em lugares públicos, especialmente rodoviárias, estações de trens e aeroportos, uma frase conclamava: “Brasil: ame-o ou deixe-o”.

A lógica governamental era a seguinte: quem quisesse colaborar com o progresso do país, que vivia a fase do milagre brasileiro, e se somar ao esforço desenvolvimentista que presidia a política econômica do governo teria chances, oportunidades e benefícios. Já os que discordavam do governo e lhe faziam oposição ilegal não mereciam ficar no Brasil.

O jornalista João Saldanha, que classificara o Brasil para a Copa do Mundo, era conhecido como competente técnico de futebol e como cidadão adepto da ideologia comunista. Faltava pouco tempo para o início do certame, apenas 60 dias, quando a notícia de seu afastamento da seleção, depois de um entrevero com o general presidente Garrastazu Médici, correu como um rastilho por todo o território nacional e ganhou repercussão internacional. Foi, então, substituído pelo ex-jogador Mário Jorge Lobo Zagallo, que depois de alterações estratégicas, como a de um adequado aproveitamento de Wilson Piazza, comandou o time vitorioso, formado e treinado por Saldanha.

Para o governo federal, o problema político de ter um técnico de esquerda à frente do time que vestia o uniforme canarinho estava resolvido. Para os brasileiros ficou evidente que uma injustiça histórica fora cometida.

As feras do Saldanha, como ficou conhecida a seleção de 1970, foram para o México sem seu mentor. O grupo formado por Félix, Ado, Leão, Carlos Alberto, Zé Maria, Brito, Baldochi, Fontana, Wilson Piazza, Everaldo, Marco Antônio, Clodoaldo, Joel, Rivelino, Gérson, Jairzinho, Paulo César, Pelé, Dario, Tostão, Roberto e Edu alcançou a vitória final. Para os brasileiros, aquele feito em verde e amarelo teve sabor de festa. O regime militar, por sua vez, o transmudou em ganho político. A propaganda oficial imputou a conquista do tricampeonato de futebol ao propalado milagre econômico brasileiro. Difundiu que o título alcançado representava antes de tudo um prenúncio: o de que o Brasil, com ordem, segurança e desenvolvimento, como preconizava a Doutrina de Segurança Nacional, caminhava a passos largos para se tornar uma potência mundial.

O “milagre brasileiro” não teve longa duração, nem mesmo média, mas seu impacto foi efetivo. Proporcionou o aumento do PIB, que alcançou 11,2%, estabilizou a inflação em 18%, aumentou a produção industrial, gerou empregos, aumentou a arrecadação de impostos e investiu em obras faraônicas, que simbolizavam o Brasil potência. As duas mais importantes foram a Ponte Rio-Niterói e a inconclusa Rodovia Transamazônica.

Mas o milagre tinha também seu avesso, caracterizado por concentração da renda, arrocho salarial, endividamento externo e pouca atenção para com programas sociais. Além disso, dependia em demasia do petróleo internacional. Quando da crise do petróleo, que teve seu apogeu em 1974, o breve ciclo de otimismo econômico entrou em desaceleração e os jingles publicitários, como Pra frente, Brasil, já não correspondiam à realidade, pois a economia brasileira passara da euforia à incerteza e ao endividamento.

No final do governo Médici, os presídios e prisões estavam abarrotados de presos políticos e milhares de brasileiros viviam no exílio. Faltava ainda percorrer um longo e tortuoso caminho para que o Brasil voltasse a reconstruir uma democracia política. Muitos dos jovens que, como eu, frequentaram cursos universitários naqueles anos, apesar de não terem perdido a esperança, aprenderam lições de desconfiança, silêncio, medo, perdas de amigos, saudades e injustiças.

Uma das injustiças daqueles anos de arbítrio que muito me impressionou foi a demissão de João Saldanha do comando da seleção. Muitas vezes me perguntei qual teria sido seu sentimento mais profundo quando da vitória brasileira no tricampeonato. Gosto de pensar que, no fundo da alma, sentiu-se também vitorioso. Tão vitorioso como todos os brasileiros que torceram por sua seleção, pelo nosso time. Tão vitorioso como todos os brasileiros que cultivaram esperança em um tempo de ilusões perdidas. A ele, botafoguense como eu, dedico este breve relembrar reflexivo.

E que venha mais uma vitória neste ano de 2010!


Lucilia de Almeida Neves Delgado é historiadora, professora da PUC Minas, professora da UFMG e pesquisadora sênior da UnB


Fonte: jornal Estado de Minas - 12 de junho de 2010.

Comentários

Quando o governo disse que ia construir a Transamazonica o Japão quiz construir de graça desde que aceitasse dois mil japonese imigrantes e o governo disse ¨não¨.
Precisa o jovem ler Ä Patria¨de Olavo Bilac e valorizar que não veras nenhum pais como esse.Ensina-los que nenhum país no mundo herdou o legado de tamanha extensões de terra de seu colonizador como o Brasil.