VOLUNTARIADO CORPORATIVO E UTOPIA - última parte

Por Cléber Sérgio de Seixas

Paulo Freire, seguramente um dos maiores educadores que o mundo já conheceu, dizia que os oprimidos é que deveriam ser os atores da própria libertação, e condenava as ações falsamente generosas dos opressores, as quais se nutrem da permanência da desigualdade social. Eis um trecho de sua maior obra, Pedagogia do Oprimido:

Estes, que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos. Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos. Por isto é que o poder dos opressores, quando se pretende amenizar ante a debilidade dos oprimidos, não apenas quase sempre se expressa em falsa generosidade, como jamais a ultrapassa. Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua ‘generosidade’ continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A ‘ordem’ social injusta é fonte geradora, permanente, desta ‘generosidade’ que se nutre da morte, do desalento e da miséria”.

Não é objetivo deste artigo levar o leitor a concluir precipitadamente que aqui é feito um juízo de valor condenando o voluntariado empresarial. Não se pretende neste artigo demonizá-lo. Não está em questão o ser ou não ser voluntário, nem o fato de ser bom ou ruim o voluntariado, mas sim o fato de que este, da forma como tem sido colocado em prática, não contribuirá para acabar com as mazelas sociais, como pretendem os objetivos do milênio. Os problemas e os sofrimentos dos que são alvo da filantropia serão apenas momentaneamente amenizados pelas ações da responsabilidade social e de um de seus braços, o voluntariado, talvez retornando depois mais contundentes ainda.

Como se mede a eficiência de uma ação assistencial. A eficácia de uma ação assistencial deve ser medida pela situação do auxiliado a partir do momento em que desaparece o auxilio do provedor. Se o auxiliado progrediu após o término ou ausência do auxílio prestado, terá sido eficiente. Se, porém, aquele que recebeu o auxílio não avançou e continua dependente da filantropia, concluir-se-á que a ação foi ineficiente, podendo assim ser classificada como mero assistencialismo.

A questão está em se lutar para que não seja mais necessária a filantropia, esta esmola travestida de assistência social, já que a justiça social virá antes do óbulo oferecido por mãos empresariais. Continua assim Paulo Freire:

Não pode jamais entender esta ‘generosidade’ que a verdadeira generosidade está em lutar para que desapareçam as razões que alimentam o falso amor. A falsa caridade, da qual decorre a mão estendida do ‘demitido da vida’, medroso e inseguro, esmagado e vencido. Mão estendida e trêmula dos esfarrapados do mundo, dos ‘condenados da terra’. A grande generosidade está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos, se estendam menos, em gestos de súplica. Súplica de humildes a poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalhem e transformem o mundo. Este ensinamento e este aprendizado têm de partir, porém, dos ‘condenados da terra’, dos oprimidos, dos esfarrapados do mundo e dos que com eles realmente se solidarizem. Lutando pela restauração de sua humanidade estarão, sejam de homens ou de povos, tentando a restauração da generosidade verdadeira”.

Tendo como norte a afirmação freireana de que a verdadeira generosidade consiste em promover meios para o desaparecimento das condições que alimentam o “falso amor”, toda ação de assistência social empresarial deveria nascer fadada a atuar por tempo limitado e depois fenecer, visto que seu objetivo seria erradicar as causas fomentadoras desta assistência. Na maior parte das vezes o que se observa nas empresas que promovem ações de voluntariado é exatamente o contrário, ou seja, já que as ações de assistência social empresariais visam na verdade a projeção das empresas no mercado, não seria interessante às mesmas que a filantropia tivesse fim, o que as obrigaria a buscar outras frentes onde aplicar sua pseudo-caridade.

Assim a assistência social oferecida pelas empresas, via voluntariado, procura se concentrar nos efeitos, tomando o cuidado de não erradicar as causas, a fim de que o palco de atuação de sua filantropia se mantenha de pé. É óbvio que com palavras como as já citadas, Paulo Freire deve ser considerado não apenas um educador, mas um educador-politizador. Seus ensinamentos não apenas se situam na Pedagogia, mas também na Sociologia e Política.

Atualmente, porém, tem-se afirmado, ou pelo menos dado a entender, que a solução para os graves problemas sociais que assolam a humanidade não passa pela ação das ferramentas da política. Tem-se visto a grande mídia, dominada por interesses mercantis, execrar políticos e deixar implícito nas entrelinhas de suas matérias que todos eles seriam corruptos, o Estado estaria falido e que as rédeas da situação deveriam estar nas mãos do laissez-faire, sob a “mão invisível do mercado”, da “livre” iniciativa privada, ou seja, a eficiência não pairaria mais nas instâncias dos governos devido à falência do Estado. O congresso, conforme as mensagens subliminares que nos são repassadas dia a dia pela mídia conservadora e neoliberal, seria apenas um covil de salteadores, bastião da ineficiência, ao passo que toda a eficiência e criatividade estariam concentradas apenas em mãos empresariais. É inegável que os cenários de corrupção que assolam os governos aqui e acolá endossam tal pensamento. No entanto, se a esfera estatal é o paradigma da ineficiência, por que repetir os mesmos erros que o Estado tem cometido?

Empresários e imprensa, por exemplo, criticam de assistencialistas programas como o Fome Zero ou o Bolsa Família, e, no entanto, aplicam em suas empresas o mesmo tipo de assistencialismo, só que pomposamente chamado de responsabilidade social corporativa. Ou dever-se-ia dizer que um programa filantrópico-humanitário deixaria de ser assistencialista apenas por estar sendo executado por mãos empresariais?

Alguns observadores têm apontado o estado do bem-estar social (welfare state) como o maior inimigo do neoliberalismo atualmente, dada a derrocada do socialismo a nível global. Dessa forma, é interessante aos interesses das corporações dilapidar o Estado, esvaziá-lo de seu caráter promotor de programas garantidores do bem estar dos cidadãos e reduzi-lo a mero síndico dos interesses empresariais. Em outras palavras, o Estado deveria deixar o “barco correr” ao sabor dos ventos da “livre” concorrência, isto é, deixar que o mercado se auto-regulamente. Assim, em momentos de caos social, as mãos dos socialmente desvalidos, não tendo mais como buscar o auxílio do Estado, teriam que depender da hipotética boa vontade dos empresários que, assim, deixariam de ser caçadores de cifrões para se tornarem os bons moços distribuidores de esmolas.


Para que a “onda” da responsabilidade social e do voluntariado “cole”, se faz necessária uma nova pedagogia. Aproxima-se a juventude, sobretudo os estudantes, das ações sociais empresariais ao passo que a distancia das ações políticas. O trecho citado do Manifesto continua sendo atual: “Repelem, portanto, toda ação política...”. Procura-se induzir o jovem a ser um voluntário nas empresas ao invés de ser um militante em um partido, em algum tipo de movimento de bases populares ou ONG’s. Em outras palavras, seria como dizer ao jovem: “Seja voluntário e faça a sua parte, pois vai contar pontos em seu currículo”; “não se envolva com política ou subversão”; “um mundo mais justo é possível se cada um, individualmente, fizer a sua parte”. Eis um dos pontos nevrálgicos da questão: o sistema exorta cada um a fazer a sua parte pois teme que os jovens se organizem adquirindo coesão e, conseqüentemente, força, tornando-se, assim, vanguarda para outras classes, tal como ocorreu nos movimentos estudantis nos anos 60. A estratégia empregada é antiga: “dividir para conquistar”. Enquanto as ações forem focadas e localizadas no micro, o macro permanecerá intacto, como preferem os conservadores de plantão.

A cultura neoliberal tem produzido um novo tipo de ser humano: desideologizado, excessivamente pragmático, hedonista e desinteressado em causas coletivas. Da mesma forma que o sistema capitalista prima pelo individualismo e lucros individuais, assevera que a solução dos problemas sócio-econômicos globais será também decorrente de iniciativas individuais, sempre supervisionadas pelos oráculos empresariais. Diz-se que se cada um fizer a sua parte, longe dos palcos políticos ou subversivos, é claro, teremos um mundo melhor. Portanto, se o individualismo exacerbado e o lucro individual são algumas das causas da gritante desigualdade econômico-social que assola o mundo, seriam então as soluções dos problemas advindos desta desigualdade obras do voluntariado corporativo capitaneado por aqueles que fomentaram tal situação?

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