UMA VERDADE IRRELEVANTE

Cartilha do IBASE em defesa das cotas (clique na figura para baixar a publicação)


Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

Sim, as diferenças genéticas entre as chamadas “raças humanas” são insignificantes e a cor da pele é determinada por apenas algumas dezenas de genes entre os trinta mil que formam o genoma humano. Mas e daí?

O argumento "biologicamente não há raças, então não pode haver cotas raciais", mais que falho, é desonesto. Foi o mesmo usado por S. E. Castan, editor de livros antissemitas e neonazistas ao ser condenado em 1998 com base nas leis que punem manifestações de preconceito racial: “os judeus são uma etnia, e não uma raça, portanto, antissemitismo não é racismo”. O STF não aceitou o argumento e confirmou a condenação a dois anos de prisão.

Não há porque levar mais a sério um Ali Kamel. Que as diferenças étnicas sejam geneticamente irrelevantes não impediu que milhões morressem em genocídios nos campos de extermínio alemães, na Bósnia ou em Ruanda e que um número muito maior de pessoas tenha sofrido ou ainda sofra humilhações e discriminações por serem negros nos EUA ou no Brasil.

Uma verdade irrelevante, uma desconversa. É o que se pode dizer das lições de genética com as quais se quer desmerecer a discussão sobre políticas de ação afirmativa. O racismo brasileiro é um fato social e histórico que não há como negar de boa fé. Ignorar isso e falar de genética é apenas uma tentativa de mudar de assunto, tanto quanto seria recorrer à química para afirmar que negros e brancos são feitos das mesmas moléculas. Ou quanto filosofar sobre a irrelevância ética dos valores monetários e o caráter ilusório da felicidade para negar que há diferenças entre ricos e pobres.

A diferença de renda entre brancos e negros é grande e está aumentando: de 2004 a 2008, segundo a PNAD, a diferença entre as rendas médias dos negros (incluindo “pardos”) e dos brancos no Brasil se ampliou. A renda média dos brancos aumentou 115% em termos nominais, chegando a renda média familiar per capita de R$ 791 e a dos negros apenas 99%, ficando em R$ 398.

Isso embora a diferença de escolaridade entre as duas populações tenha diminuído: na verdade, os efeitos da discriminação mostram-se mais importantes quando se considera negros e brancos mais escolarizados. Em São Paulo, um branco com fundamental incompleto ganha 19% mais que um negro com igual instrução, enquanto um branco com curso superior completo ganha 41% mais que um (raro) negro nas mesmas condições.

Para os racistas, tanto os poucos que recorrem a teses biológicas para justificar seus preconceitos quanto para a maioria que discrimina sem pensar, não importa o fato biológico de que há mais genes envolvidos em variações genéticas individuais do que na diferença entre etnias. Nem a consequência óbvia de que, caso precisem de uma transfusão ou transplante, é perfeitamente possível que o sangue ou órgão de uma pessoa de outra raça se mostre mais compatível com o seu do que o de um parente.

A maioria deles simplesmente não se sente confortável em compartilhar os mesmos espaços e ter de tratar de igual para igual alguém de diferente cor de pele, que “não deveria estar ali”, concorrendo com seus filhos ou com sua própria carreira. Não é preciso que se ponham cartazes para dizer explicitamente “white only”, não é preciso que se organize uma Ku-Klux-Klan: basta o consenso silencioso de que o negro deve ficar “em seu lugar”.

Dito isso, é cabível discutir se favorecer negros e indígenas na seleção dos candidatos ao ensino superior é a melhor forma, de combater o preconceito racial a curto prazo, ou a que deveria receber maior prioridade aqui e agora. As estatísticas mostram que a discriminação continua a existir entre negros e brancos portadores de iguais diplomas: talvez seja mais importante combater o preconceito na seleção profissional, na disputa de vagas no mercado de trabalho e na pós-graduação. Também é perfeitamente razoável discutir se é preferível que o preconceito racial seja compensado por meio de cotas ou de diferenças de pontuação e como isso deve ser combinado com a consideração de outros fatores, como a renda. Mas falar de genética para fingir que o problema não existe é desconversar para desinformar.

Fonte: site da revista Carta Capital

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