GOLPES TELEGUIADOS

Por Cléber Sérgio de Seixas



O golpe de Estado em Honduras pegou muita gente de surpresa, inclusive este que vos escreve. Apesar do espanto inicial, depois fui refletir com meus botões, fazendo um retrospecto da história recente da América Latina, e cheguei à conclusão que as democracias deste imenso continente são ainda muito jovens. No caso do Brasil, desde a proclamação da República, passamos por ciclos de democracia e ditadura. Iniciamos com alguns generais guiados pelo ideário positivista; seguiu-se um período comandado pelos barões do café com leite; passamos pelo período ditatorial de Vargas, depois por uma democracia mais prá lá do que pra cá durante o governo Dutra; elegemos o mineiro JK, seguido de Jânio; fomos traídos pelos militares, em cujas garras ficamos por 21 anos, e agora nossa jovem democracia sopra 24 velinhas. É muito pouco tempo se compararmos com as democracias européias.

Sempre que um governo se mostra progressista demais – entenda progressista aqui como um governo voltado aos interesses da maioria, ou seja, o oposto de conservador – alguma medida para desestabilizá-lo será tomada. Vejam, por exemplo, o caso de João Goulart. Quando era ministro do trabalho no segundo governo Vargas, Jango duplicou o valor do salário mínimo, o que lhe valeu a ira dos coronéis. Figurinha carimbada, Jango nunca mais conseguiria governar em paz. Com a renúncia de Jânio Quadros, a vacância do cargo seria ocupada, logicamente, pelo vice, Jango. Porém ele se encontrava em visita à China, visita cujo intuito era abrir mais nosso leque de parceiros comercias, livrando-nos do semi-monopólio com os EUA. Não fosse Leonel Brizola, Jango não teria sido empossado como presidente da nação. Era um ensaio para um golpe futuro. Nos anos que se seguiram, o governo Goulart sofreu toda sorte de ataques e tentativas de sabotagem por parte dos adversários. O golpe de misericórdia veio no fatídico 1º de abril de 64.



Em entrevista à revista Veja (9 de março de 1977), 13 anos após a quartelada tupiniquim, o ex-embaixador Lincoln Gordon, questionado se os americanos haviam repassado dinheiro aos militares brasileiros golpistas, disse, textualmente, o seguinte: “Que diabo, isso era mais ou menos um hábito, naquele período... Portanto, a idéia de ter essa caixinha para despesas políticas apareceu e se desenvolveu, como ficou claro em outros casos, como no Chile. A CIA estava acostumada a ter fundos políticos. Tudo começou na Itália, em 1948, quando dinheiro americano ajudou o fortalecimento da democracia-cristã. Certamente foi mais de 1 milhão de dólares, e eu não ficaria surpreso se tivesse chegado a 5 milhões de dólares”. Veja, caro leitor, que o ex-embaixador confessa que auxílio financeiro fora prestado aos opositores do presidente democraticamente eleito Salvador Allende.

Eduardo Galeano, jornalista uruguaio, assim apresenta a questão em sua magistral obra As Veias Abertas da America Latina: “As atas do Congresso dos Estados Unidos costumam registrar testemunhos irrefutáveis acerca das intervenções na América Latina. Corroídas pelo ácido da culpa, as consciências realizam sua catarse nos confessionários do Império... Amplas confissões públicas têm provado, entre outras coisas, que o governo dos Estados Unidos participou diretamente, mediante suborno, espionagem e chantagem, na política chilena. A estratégia do crime foi planejada em Washington. Desde 1970 que Kissinger e os serviços de informação preparavam cuidadosamente a queda de Allende. Milhões de dólares foram distribuídos entre os inimigos do governo legal da Unidade Popular. Assim é que, por exemplo, puderam sustentar sua longa greve os proprietários de caminhões, que em 1973 paralisaram boa parte da economia do país. A certeza de impunidade solta as línguas”.



Mais adiante, no mesmo livro, Galeano revela que mesmo após o Congresso dos EUA ter desistido da política de auxílio econômico e militar a regimes golpistas, a ajuda econômica ainda prosseguiu sem a aprovação do congresso, ou seja, continuou “por debaixo dos panos”. Assim, o general Pinochet recebeu, durante o ano de 1976, 290 milhões de dólares sem autorização parlamentar. Da mesma forma, a junta militar que assumiu o poder na Argentina, em seu primeiro ano de vida, recebeu 500 milhões de dólares de bancos privados norte-americanos e 415 milhões do Banco Mundial e do BID. Outro exemplo clássico foi o escândalo Irã-Contras, um esquema ilegal de venda de armas para o Irã com o intuito de angariar proventos para financiar a guerrilha anti-sandinista na Nicarágua.

Portanto, caros amigos, não se surpreendam quando muitos disserem por aí que por detrás dos golpistas hondurenhos estão escusos interesses norte-americanos. O simples fato de um negro estar ocupando a cadeira de presidente dos EUA não mudaria o modus operandi do governo daquela nação. Creio que engana-se quem acha que o democrata de Illinois, quadragésimo quarto presidente dos EUA, será um divisor de águas na política externa daquela nação. Sua tímida censura aos golpistas hondurenhos pode encobrir fatos execráveis escondidos nos obscuros bastidores do intervencionismo norte-americano. Os golpistas hondurenhos não são autodidatas, tal como não eram os golpistas brasileiros em 64, os que apearam Allende do poder em 73, os contra-revolucionários na Nicarágua sandinista dos anos 80 e tantos outros de triste memória.



Conforme alguns analistas já pronunciaram, o golpe hondurenho abre um precedente ruim para a América Latina, na medida em que serve de ensaio a outros futuros. A reativação da Quarta Frota foi um recado eloqüente aos governos progressistas e populares – na melhor acepção da palavra – que hoje estão no poder na América Latina.



Enquanto a Europa bandea-se à direita, a América Latina ruma ao Socialismo do século XXI, capitaneado por governantes como Hugo Chávez, numa ponta, e Lula em outra – estilos diferentes, conflitantes às vezes, mas que, cada um a sua maneira, buscam dar novos rumos à política deste pedaço de continente cuja tradição sempre foi ser espoliado pelas nações hegemônicas de plantão. No caso do Brasil, já fomos colônia de Portugal, financiadores da Revolução Industrial inglesa e satélite gravitando em torno dos interesses dos Estados Unidos, de quem estamos, ainda, sob as barbas. Hoje, apesar de toda a corrupção envolvendo nossa política, podemos dizer que a classe operária brasileira está a alguns passos do paraíso. No entanto, é necessário vigilância, sobretudo por parte das esquerdas, já que as viúvas da ditadura ainda perambulam por aí, disfarçadas, andando ao redor da presa, desejosas do retorno do tempo em que o bolo crescia e só elas abocanhavam-lhe os pedaços. Assim, urge manter fresca a memória e levantar as barricadas da resistência e da cidadania a fim de evitar que eventos funestos, tal como o golpe de Estado em Honduras, voltem a ocorrer nas terras latino-americanas.

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