SOBRE A DEMOCRACIA II

Por Cléber Sérgio de Seixas

Em um post anterior intitulado Sobre a Democracia, afirmei que o termo pode ser focado de vários ângulos, revelando nuances diferentes. A elasticidade do termo se deve ao fato de o mesmo assumir vários formatos e contornos, dependendo dos interesses daqueles que o focalizam. Exemplos históricos abundam para ilustrar como governos democráticos foram taxados de ditatoriais e, por outro lado, como muitos regimes ditatoriais foram coroados com a auréola de democráticos. Portanto, algo pode ser chamado de democrático, mas ser exatamente o contrário.

A grande imprensa internacional coloca governos como o cubano, o boliviano e o venezuelano no rol dos regimes não democráticos. O caso venezuelano é emblemático, já que Chávez se utiliza de referendos populares sem parcimônia. Acusam, portanto, o dirigente venezuelano de “populista”. Ora, se democracia é o povo decidindo, é o povo no poder, por que não usar de tais mecanismos, constitucionalmente previstos, para consultar as massas a respeito daquilo que as possa interessar? A constituição brasileira, em seu capítulo IV, que trata dos direitos políticos, informa o seguinte:

Artigo 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I – plebiscito;
II – referendo
III – iniciativa popular

Se a constituição diz que existem tais mecanismos populares de exercício da democracia, por que os mesmos não são usados nas terras tupiniquins tal como são no país onde nasceu Simón Bolívar? A resposta talvez passe pelo medo dos governantes brasileiros de também serem execrados pela mídia como populistas, ou então por realmente temerem a escolha popular. Na Venezuela e na Bolívia, por exemplo, via consulta popular, foi decidido que o presidente pode se reeleger quantas vezes quiser. Para a mídia isto é ditadura. Se num país o povo decide que o governante pode se reeleger inúmeras vezes, por meio de um mecanismo constitucionalmente previsto, num processo cuja lisura seja atestada por vários observadores internacionais, como falar em ditadura?

A História atesta que qualquer governo que ousar promover a participação popular nas grandes decisões nacionais será taxado de demagógico, populista, cerceador da livre iniciativa e outros infames atributos, tudo em nome da tão propalada “democracia”. Tal governo será combatido o mais ferrenhamente possível. Na peleja, tudo será tentado, da destruição de reputações às sabotagens diretas, tudo sob as bênçãos do quarto poder. Se tudo isto falhar, tão logo a opinião pública esteja preparada pela mídia, dar-se-á o golpe de misericórdia, ou seja, elementos da oposição, na maioria das vezes indiretamente auxiliados por forças estrangeiras, capitaneadas por interesses financeiros supra-fronteiriços, apearão do poder o governante dito populista e colocarão no lugar algum títere dos interesses já citados. A fórmula se repetiu durante quase todo o século passado na América Latina, e pode ser que se repita neste.

Um exemplo notório do que se disse acima foi o caso chileno no início dos anos 70. Salvador Allende, eleito democraticamente presidente do Chile, passou a sofrer intensa oposição externa e interna e sabotagens de toda espécie pelo fato de ter tomado medidas de cunho popular em seu governo. O Chile não era, e é possível que nem pretendia ser, uma nação comunista, nos moldes de Cuba. Contudo, Allende pagou caro por convidar o povo chileno a ser protagonista de seu próprio destino. Em 11 de setembro de 1973, Allende era apeado do poder por intermédio de uma chuva de bombas que caiam sobre o Palácio de La Moneda. Depois da morte do presidente, às 21 horas daquele dia, as redes de televisão chilenas transmitiram o discurso do general Pinochet que disse: “As forças armadas e da ordem atuaram no dia de hoje só com a inspiração patriótica de tirar o país do caos agudo em que o precipitava o governo marxista de Salvador Allende”. Notem que em seu discurso o ditador fala de “forças da ordem”. A ordem a qual se referia Pinochet é exatamente a ordem que deseja manter intacto o status quo das classes sociais, contrariando o discurso muito propalado de que no sistema capitalista existem liberdade e mobilidade social. Da mesma forma que nos dias de hoje Evo Morales é execrado por tentar conceder aos indígenas – maioria naquele país – o acesso a um padrão de vida como jamais tiveram, levando a cabo a reforma agrária e a nacionalização dos hidrocarbonetos, medidas cruciais ao desenvolvimento social daquele país, assim também Allende pagou com a vida por ter tentado algo semelhante, conforme deixam claro suas últimas palavras: “Colocado pela história nesta situação, pagarei com a vida a lealdade do povo. A História é nossa, é feita pelos povos”. No Brasil contemporâneo, as cotas para negros nas universidades, por exemplo, são consideradas pelos opositores como meros artifícios demagógicos que não diminuirão os efeitos da exclusão social que tanto nos aflige. No entanto, por trás deste discurso, oculta-se o gigantesco preconceito de nossas elites. Portanto, todo governo popular será sempre taxado de estar levando o país ao caos, quando, na verdade, estiver defendendo os interesses das classes menos favorecidas.

Voltando ao exemplo cubano, algumas entidades internacionais acusam o regime da ilha de desrespeitar continuamente os direitos humanos. Muitos acreditam que lá nasceu a reencarnação do diabo, Fidel Castro. No entanto, a grande mídia silencia quando se trata de desrespeitos aos direitos humanos cometidos por nações aliadas aos interesses das grandes potências e dos grandes conglomerados financeiros. Na Arábia Saudita, por exemplo, condenados são decapitados em praça pública, enquanto operários trabalham em regime de semi-escravidão para construir as maravilhas arquitetônicas do Dubai. Já na china, os órgãos dos prisioneiros mortos são vendidos a preços módicos no mercado internacional de órgãos.

Portando, caro leitor/internauta, quando o centro da questão for o significado do termo democracia, aguce seu senso crítico, cheque se a fonte está qualificada para emitir algum juízo de valor a respeito, se é isenta o suficiente para tal, pois, por trás de discursos aparentemente liberais e “democráticos”, estão velados os mais escusos interesses. Enquanto a democracia se resumir a voto, enquanto for só delegativa e não participativa, o povo ficará sempre à margem da mesma, colhendo as migalhas que porventura caírem da mesa das elites.

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