CHE DOMESTICADO


Por Cléber Sérgio de Seixas

Em 9 de outubro de 1967 um guerrilheiro faminto, sujo e maltrapilho era capturado e assassinado aos pés dos Andes bolivianos, especificamente no povoado de La Higuera. Chegava ao fim uma caçada de onze meses, na qual a presa era ninguém menos que Ernesto Guevara de La Serna, apelidado de “Che” por sua origem argentina.

Os algozes, militares bolivianos financiados e treinados pela CIA e pelo exército norte-americano, fizeram questão de fotografar os instantes finais de Che, bem como seu cadáver crivado de balas. A foto do corpo de Che estirado sobre a lavanderia de um hospital da cidade de Vallegrande, para alguns, parecia evocar a figura do Cristo morto. “Ele parecia Jesus Cristo. Tinha os olhos abertos que me seguiam por todos os lados que eu olhasse", disse, anos depois, uma enfermeira que ajudou a injetar um litro e meio de formol no cadáver do guerrilheiro, a fim de que o mesmo pudesse ficar mais tempo exposto.

Os paralelos com o Nazareno podem não parar por aí. Tal qual Jesus Cristo, Guevara fora condenado e executado por um império. No caso de Cristo, tratou-se do maior império que a História já conheceu. No caso de Che, a condenação veio por parte de um império que vinha sofrendo derrotas do guerrilheiro desde a Revolução Cubana, em 1959. Che era um espinho atravessado na garganta do império cujo símbolo é uma ave de rapina. Ambos, Guevara e Jesus, foram perseguidos e executados por constituírem ameaça a interesses imperialistas e por propalarem a igualdade entre os homens. A ambos também se atribuem milagres: nos dias atuais, velas são acesas e pedidos são feitos a “San Ernestito” no povoado de La Higuera e na cidade de Vallegrande, locais de execução e exposição do Guevara abatido. No entanto, o maior milagre que pode ser atribuído a Che, nestes sombrios tempos “desideologizados” e pouco altruístas, é fazer com que algumas pessoas lutem em prol de mudanças sociais, acreditando que um outro mundo seja possível.


Contudo, a imagem de Che que ficou para a história foi aquela tirada pelo fotógrafo Alberto Korda por ocasião de um enterro, e que se tornou uma das mais reproduzidas em todos os tempos. Porém, ícones e figuras, quando encontram um fim em si mesmos, acabam se tornando inócuos.

Como já disse em outros textos, o atual sistema econômico tem a fabulosa capacidade de transformar tudo em mercadoria. Com Che não foi diferente. Sua famosa foto estampa vários produtos, de camisas a lingerie feminina. Che se tornou até marca de cerveja londrina. Recordo-me, então, das lúcidas palavras de Lênin em sua obra O Estado e a Revolução, escrito em 1917: “Os grandes revolucionários foram sempre perseguidos durante a vida; a sua doutrina foi sempre alvo do ódio mais feroz, das mais furiosas campanhas de mentiras e difamação por parte das classes dominantes. Mas, depois da sua morte, tenta-se convertê-los em ídolos inofensivos, canonizá-los por assim dizer, cercar o seu nome de uma auréola de glória, para ‘consolo’ das classes oprimidas e para o seu ludíbrio, enquanto se castra a substância do seu ensinamento revolucionário, embotando-lhe o gume, aviltando-o”.

Quando o Sistema populariza a efígie de Che por meio da disseminação maciça de sua mais famosa fotografia, não faz mais do que neutralizar e descaracterizar o que ele significou, embotando-lhe a eficácia do exemplo. Transformá-lo em mero ídolo pop, associando-o ao consumo de objetos, é o mesmo que domesticá-lo. Muitos usam camisas com a estampa de Che, mas podem não estar imbuídos de seus ideais, nem tampouco dispostos a se sacrificarem por eles até às ultimas conseqüências, tal qual fizera o guerrilheiro.

A conscientização de Che acerca dos muitos problemas latino-americanos tem como uma de suas origens a viagem que empreendeu em companhia de seu amigo Alberto Granado – experiência magistralmente retratada por Walter Salles no filme Diários de Motocicleta. Na Guatemala, Che pôde presenciar o golpe de estado financiado por Washington, que apeou do governo o presidente democraticamente eleito Jacobo Arbenz. No México conhece Fidel Castro. Juntos, rumam para Cuba a fim de iniciar uma guerrilha que acabaria por libertar aquela nação do jugo de um títere norte-americano, o ditador Fulgêncio Batista. Em 1965, Che abandona Cuba a fim de levar a experiência do foco revolucionário para os rincões da África. Derrotado no Congo, retorna ao continente americano e, na Bolívia, tenta criar novo foco guerrilheiro. Como não encontra na Bolívia as mesmas condições da Sierra Maestra, acaba sendo derrotado e assassinado.

A mensagem que o exemplo de Che deixa para a juventude é a de que é necessário um engajamento para que mudanças se operem em nossa sociedade em prol da justiça social. A memória de Che deve ser resgatada nesses tempos em que alguns jovens têm perdido a dimensão da utopia, entendida aqui como crença na possibilidade de mudar o país e o mundo, urbi et orbi.

O Sistema não se incomoda com a “rebeldia” e irreverência de jovens que pintam os cabelos, tatuam o corpo, usam calças rasgadas, cabelos despenteados ou põem piercings, em suma, que mudam a aparência, mas não oferecem risco à hegemonia dos opressores de plantão. O Sistema aceitará e até endossará a irreverência juvenil, desde que a mesma mantenha intacta a estrutura da desigualdade social. Se, pelo contrário, os jovens se engajarem em ações que promovam mudanças sociais, Che não terá sido domesticado, seu legado permanecerá vivo.  

Vive el Che!

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