PERIFERIA – MUNDO DE DIVERSIDADE OU DE GLOBALIZAÇÃO?

Por Míriam Pacheco da Silva Seixas - professora e psicopedagoga

Vivo num mundo conturbado. Me consideram uma criança ou, por vezes, um adolescente desmiolado, e quando querem me reprimir me chamam de menor abandonado. De abandono familiar não sofro não, sofro do abandono social. Há quem me veja como um fantasma urbano ou pedinte marginal; na feirinha as madames me chamam garoto carregador, nas ruas que trabalho, tenho nomes diferentes: o garoto do jornal, o engraxate. Pros malandros moleque, e os “gambé” me chamam de cheira pó. Na escola os professores me chamam de o número 32 da turma D ou então o magricela de boné da turma D. Sou anônimo quando convém. Já os colegas de escola me deram o apelido de fuinha, pelo meu tamanho e por ficar sempre pelos cantos – é que não me enquadro na galera.

Moro na periferia, numa cidade grande em extensão e maior ainda em desigualdade, onde tem mais gente que emprego. É conhecida como cidade dormitório - quase todo mundo sai daqui pra capital a fim de arrumar um trampo. Também começam a chamar a cidade onde moro de cidade presídio; os políticos vêem as terras daqui como um lugar pra marginal ficar. Quando falo onde moro as pessoas têm medo ou fazem piadas. Além de a cidade ter má fama, ainda moro em bairro pequeno. Para a TV sempre que morador de periferia faz algo digno e tenta honestamente superar o caos e a penúria, ajudando ao próximo e sendo um ser de caráter, os telejornais anunciam o lugar como comunidade ou vila. Quando acontece algo errado, quando a chapa esquenta, o lugar será chamado de favela ou aglomerado.

Pra sobreviver tenho muita coisa pra fazer, atividades são o que não me faltam. Sou engraxate, jornaleiro, vendo balas, faço malabarismos pelas ruas da capital, carrego sacolinhas das madames na feira e, pra aumentar a renda da família, vou à escola, pois tenho que estar sempre presente, mesmo que com pensamento ausente, a fim de garantir o bolsa-família, renda extra para o pão da cesta.

É a escola o lugar que mais gosto. Dizem que escola dá futuro. Ainda espero ter retorno deste lugar. A escola é meu único lugar de descontração e diversão. Lá tem grupo de alunos que mandam mais que qualquer adulto, professores que andam sempre acuados perante alguns alunos; e eu, no meu canto, fico ali sempre calado, matutando e vendo tudo o que se passa ao meu redor. Toca o sinal e entra um professor - aula de história sobre um mundo diversificado e também globalizado. Mas que coisa mais maluca, ser um mundo de diversidade e também global? Global pra quem? Diversificado pra quem? Diz o professor que somos uma mistura de raças - somos brancos, negros e índios, e nossa cultura tem herança das três. Chega a professora de Língua Portuguesa com a nova regra ortográfica. Dizem que com isso o Brasil e países de língua portuguesa vão ficar mais próximos, padronizados, mas eu nem sei onde fica Portugal, nem no mapa. Êta, língua chata! Cheia de regras para escrever! Mas pra falar vai de qualquer jeito “mermo”, ainda mais pra quem vive da rua. No fundo da sala acontece uma confusão: o Mané e o Zé Borracha discutem sobre uma palavra escrita no quadro. A professora intervém no assunto pra dizer que o Mané entende o significado de forma diferente porque é do norte, enquanto o Zé Borracha é daqui da comunidade. Ela diz que isso é diversidade cultural. Ora, a nova ortografia é global ou diversificada? Tempo curto é o do intervalo. Mau dá pra comer a regrada merenda, correr no banheiro e, se for bem esperto, tirar sarro com a cara de alguém, essa é uma diversão geral. Só que às vezes a galera da geral pega pesado e ai muita gente se dá mal.

Escola é bom demais, vou sendo empurrado pra frente sem aprender quase nada, bem dizer nada, escrevo mau, em todas as provas e redações minha nota é fraca. É sempre a mesma história. E na matemática sou um fracasso - cálculos complicados e prova zerada. O professor me disse pra prestar atenção e exercitar os fatos, mas quando tô no trampo ninguém fica me devendo os trocados, desse cálculo eu entendo. Os do professor é que não dá pra entender, tem regras demais pra decorar.

Vou pra casa cansado e mamulengo, e ainda pensando no que vale mais: diversidade ou globalização?

Chego em casa pro rango. Nas panelas o de sempre: arroz, feijão e ovo. Rapo o prato em frente à televisão. Mudo de canal e não encontro novidade nenhuma, todos os canais têm as mesmas coisas, isso sim é globalização! Mas também achei diversidade nas novelas. Passa uma cena de periferia, diferente da minha comunidade. O povo na novela toma café da manhã na mesa com a família toda em volta. Tem prato, xícara e muitas frutas, pão, bolo, leite, suco e café, e todos usam o talher pra comer. Aqui em casa minha mãe acorda cedo e côa o café - uma água rala - e deixa na garrafa. Leite é raridade, é produto consumido só pelos pequeninos. O pão sou eu quem compra, deixo-o sempre em cima da mesa ou do armário, e é comido a seco, sem manteiga ou margarina. É festa às vezes ter um pão com ovo no lanche de sábado à tarde, dia de faxina no barraco, dia da mãe na correria e pai na bebedeira. No domingo tem frango, pagode, forró e confusão, mas na novela todo capítulo tem comida de montão. Coisa que a gente da periferia come em dia de festa, na TV todos comem diariamente, cheios de frescuras, usando garfo e faca, e a cada bebida num tipo de copo ou taça. Que coisa mais chata! Bom mesmo é comer de colher, meter a mão no frango e tomar limonada em copo americano, que por estas bandas chamam de copo lagoinha.

Vem a segunda-feira, e com ela um desespero danado. Acaba o sossego e os sonhos. Volto à realidade dos pobres e dos coitados. Pego o lotação, espremido feito sardinha em lata, e vou à capital começar minha labuta. Quem sou, não importa. A cidade onde moro tem nome, Ribeirão das Neves. Fica na grande BH, mas pra mim moro nos rincões do Brasil, sou um pobre púbere, que ainda se lembra que na sua cidade nasceu Henfil.

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