O ESPELHO DE NARCISO

Por Cléber Sérgio de Seixas

O recurso à mitologia grega tem sido prática constante de escritores de várias áreas, seja para endossar alguma idéia ou ilustrar algum conceito. Freud, por exemplo, celebrizou o personagem Édipo, da tragédia de Sófocles, ao usá-lo para explicar sua teoria psicanalítica conhecida como Complexo de Édipo. Já o filósofo Nietzsche utilizou-se do dualismo entre Apolo e Dionísio em sua obra A Origem da Tragédia. Seguindo-lhes o exemplo, gostaria de recorrer ao mito de Eco e Narciso para tentar entender o fenômeno que faz com que tantas pessoas considerem demais a si próprias, numa demonstração de egocentrismo, ao passo que outras não se consideram tanto quanto deveriam.

Segundo a lenda, Eco era uma ninfa famosa por sua tagarelice. Certa vez ela tentou desviar a atenção de Hera, esposa de Zeus, para que a mesma não descobrisse que ele, verdadeiro atleta de alcova, estava entre as ninfas em mais uma de suas muitas aventuras extraconjugais. Porém a deusa descobriu o estratagema de Eco e, por vingança, condenou-a a nunca iniciar um diálogo, apenas repetir as últimas palavras de seu interlocutor. Ocorre que Eco se apaixonou por Narciso, belo jovem que vivia sendo assediado pelas ninfas sem nunca comprometer-se com nenhuma delas. Perdido dos amigos numa caçada, Narciso se viu sozinho num bosque. Foi quando Eco surgiu, sempre a repetir-lhe as últimas palavras. Na tentativa de aproximar-se de Narciso, foi rejeitada por ele. Diante do desdém do jovem, ela se refugiou nas rochas e nas cavernas, onde seu corpo se decompôs e se transformou em rocha, restando apenas sua voz, que repetia sempre as últimas palavras de alguém. Iradas, as ninfas pediram à deusa da vingança, Nêmesis, que condenasse o belo moço a algum tipo de amor impossível. Então, certo dia, Narciso debruçou-se sobre um lago para matar a sede, no que fora flechado por Eros, acabando por se apaixonar pela própria imagem refletida nas águas. Cada gesto seu era repetido pela bela criatura que habitava as águas e suas palavras finais eram repetidas pela voz de Eco, que já habitava os rochedos. Ficou ali até definhar completamente. No lugar onde perecera surgiu uma flor que leva seu nome. Dizem que no Hades a alma de Narciso procura ver sua imagem refletida nas escuras águas do Estige.

Diante da trágica e bela narrativa grega devemos perguntar quem somos cotidianamente: Eco ou Narciso? De que forma temos nos comportado uns para com os outros? Temos apenas refletido as opiniões alheias ou transformamos os outros, do topo do nosso egocentrismo, em meros espelhos refletores da nossa própria figura? Quando nos defrontamos com outro, quem vemos, nós mesmos ou o rosto do outro? Nos embates diários sempre recuamos diante das negativas ou somos intransigentes demais?

Eco habita nosso subconsciente e está sempre nos orientando a nunca arriscar a primeira palavra e a nos contentar em ficar por último na emissão de opiniões, por vezes até endossando a opinião daquele(s) que consideramos superior(es) a nós em algum aspecto, em detrimento da nossa própria. Não que nossas opiniões tenham que ser sempre acatadas, mas devemos, pelo menos, emiti-las. Há indivíduos que passam boa parte de suas vidas apenas cumprindo o papel de coadjuvantes, deixando sempre o protagonismo para outros, pelo simples medo de se manifestarem. É possível afirmar que Ecos poderão se converter em indivíduos hipócritas e frustrados, visto que poucas vezes conseguem abrir suas bocas, exteriorizando o que pensam, mostrando quem são. O exemplo de Eco serve de alerta para aqueles que não se consideram como deveriam, cuja auto-estima está em baixa. Estarão sempre a ressoar a opinião alheia, em detrimento da própria. Nunca terão a primeira palavra e, quando se manifestarem, apenas o farão em concordância com outros. Em suma, sempre “ecoarão” o dizer de outrem. O definhamento de Eco não começa no momento em que Narciso a rejeita, mas quando ela perde sua capacidade de expressão.

Nesses tempos em que tanto se fala de aceitar o outro apesar das diferenças, em inclusividade, ainda há indivíduos que enxergam apenas a si próprios. O Narciso da lenda nunca conseguiu se apaixonar por ninguém, exceto por si mesmo. Qualifica-se como narcisista o indivíduo que ama a si mesmo de forma excessiva. Quando tal tipo de indivíduo se aproxima do outro, espera ver não o outro, mas a si mesmo refletido. O indivíduo narcisista faz do rosto alheio apenas o reflexo do seu eu. O que o narcisista espera na relação dialógica é apenas seu reflexo, sua imagem e semelhança refletida no espelho em que converte seus interlocutores. Assim sendo, proposições e idéias que se lhe chegarem só serão recebidas se estiverem em total consonância com suas concepções, sempre subordinando os interesses alheios aos seus próprios. O narcisismo ou, caso queiram, egolatria, é o primeiro passo para o isolamento do indíviduo detentor de tal característica, tal como o Narciso mitológico que se isolou na auto contemplação até que seu corpo se desfizesse junto às águas. Narciso não procura portadores de antíteses para suas teses, e sim, e tão somente, espelhos nos quais possa ver sua imagem e semelhança refletida. Narciso pretende para si a divina capacidade de moldar indivíduos à sua imagem e semelhança.

Quando Narciso pergunta ao vazio “quem é você?”, Eco, das rochas, responde: “você...você...você...” Portanto, de certa forma, Narciso e Eco se complementam, são faces diferentes da mesma moeda. Para que Narciso exista, é necessário que existam também vários Ecos, pois Eco é apenas a reflexão da voz de Narciso; Eco é o espelho de Narciso. Contudo, o caminho sempre será o equilíbrio. Não podemos ser nem um nem outro, mas ambos ao mesmo tempo, com doses adequadas tanto de orgulho quanto de humildade.

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